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Pandemia, Clarice, José…
Cinco meses chegaram para discernir algumas linhas de força nos relatos que me confiam. Hoje, falarei de duas, com a ajuda de Clarice Lispector e José Saramago.
Escreveu Clarice, em "Saudades": "...
Sinto saudades do futuro,/ que se idealizado,/ provavelmente não será do
jeito que eu penso que vai ser...". Durante o período de confinamento,
que em geral nos honrou, ouvi idealizações com tonalidades
judaico-cristãs de um longínquo futuro próximo - suportemos o vale de
lágrimas com olhos e esperança apontados à recompensa pós-travessia. Em
todas as faixas etárias, mas os jovens, esses, quase descreviam um
alinhamento cósmico em que a abertura de gaiolas daria o braço ao
espreguiçar da liberdade. Era fácil imaginá-los a trautear os versos do
Zeca: "Ergue-te, ó Sol de Verão/ somos nós os teus cantores... Livra-te
do medo/ Que bem cedo/ Há-de o sol queimar...". Mas o vírus apaixonou-se
por festas e jantaradas, recusou férias até a uma segunda vaga outonal.
E muitos jovens amuaram, como dizia um holandês no Algarve, "só se é
jovem uma vez". (O avô que abraçará no regresso também viverá uma só
velhice. Talvez mais curta...).
Outros,
fizeram jus a um trecho da "Jangada de pedra" de Saramago: "... pessoas
de vontade fraca, daquelas que vão adiando decisões, estão sempre a
dizer amanhã, amanhã, mas isto não significa que não tenham sonhos e
desejos, o mau é morrerem antes de poderem e saberem viver deles alguma
pequena parte". Gente mais velha, com poder sobre a navegação diária,
alheia a comboios suburbanos e fins do mês de coração e bolsa apertados.
Frases
murmuradas e incrédulas: "Sabia que tinha de abrandar, mas nunca
pensei...". Saltitando entre o alívio e a ressaca de adrenalina, pela
primeira vez punham a hipótese de correrem menos e viverem mais.
Silencioso, eu fazia coro, por cancelar ida à Provença com os netos.
Queria contar-lhes Van Gogh, o homem torturado para lá das suas
esplendorosas cores. E porque não levara os ganapos antes? Por galopar
(verbo adequado) a um ritmo alucinante, vivendo (?) como se fosse
eterno.
"Amanhã, amanhã..."...
A frase
do Carlos Amaral Dias: "Tenho aprendido muito com o meu AVC. Mas não
precisava dele para nada". Tropeçar nas crises é duro, mas não reavaliar
estilos de vida quando nelas mergulhados é desperdiçar a face valiosa
da moeda. Se o "novo normal" se limitar a máscaras postas, mãos lavadas,
distanciamento físico e esperança na vacina, sobreviveremos ao vírus,
mas "apenas" isso. E outra voz se junta ao "Coro da Primavera", a de
Wilde - "Viver é a coisa mais rara do Mundo. A maioria das pessoas
apenas existe".
Muitas - demasiadas, para vergonha nossa! - não podem aspirar a mais. A outras, Deus presenteou com nozes as gengivas nuas.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
09/08/20
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