10/08/2020

JÚLIO MACHADO VAZ

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Pandemia, Clarice, José…

Cinco meses chegaram para discernir algumas linhas de força nos relatos que me confiam. Hoje, falarei de duas, com a ajuda de Clarice Lispector e José Saramago.

Escreveu Clarice, em "Saudades": "... Sinto saudades do futuro,/ que se idealizado,/ provavelmente não será do jeito que eu penso que vai ser...". Durante o período de confinamento, que em geral nos honrou, ouvi idealizações com tonalidades judaico-cristãs de um longínquo futuro próximo - suportemos o vale de lágrimas com olhos e esperança apontados à recompensa pós-travessia. Em todas as faixas etárias, mas os jovens, esses, quase descreviam um alinhamento cósmico em que a abertura de gaiolas daria o braço ao espreguiçar da liberdade. Era fácil imaginá-los a trautear os versos do Zeca: "Ergue-te, ó Sol de Verão/ somos nós os teus cantores... Livra-te do medo/ Que bem cedo/ Há-de o sol queimar...". Mas o vírus apaixonou-se por festas e jantaradas, recusou férias até a uma segunda vaga outonal. E muitos jovens amuaram, como dizia um holandês no Algarve, "só se é jovem uma vez". (O avô que abraçará no regresso também viverá uma só velhice. Talvez mais curta...).

Outros, fizeram jus a um trecho da "Jangada de pedra" de Saramago: "... pessoas de vontade fraca, daquelas que vão adiando decisões, estão sempre a dizer amanhã, amanhã, mas isto não significa que não tenham sonhos e desejos, o mau é morrerem antes de poderem e saberem viver deles alguma pequena parte". Gente mais velha, com poder sobre a navegação diária, alheia a comboios suburbanos e fins do mês de coração e bolsa apertados.

Frases murmuradas e incrédulas: "Sabia que tinha de abrandar, mas nunca pensei...". Saltitando entre o alívio e a ressaca de adrenalina, pela primeira vez punham a hipótese de correrem menos e viverem mais. Silencioso, eu fazia coro, por cancelar ida à Provença com os netos. Queria contar-lhes Van Gogh, o homem torturado para lá das suas esplendorosas cores. E porque não levara os ganapos antes? Por galopar (verbo adequado) a um ritmo alucinante, vivendo (?) como se fosse eterno. 

"Amanhã, amanhã..."...
A frase do Carlos Amaral Dias: "Tenho aprendido muito com o meu AVC. Mas não precisava dele para nada". Tropeçar nas crises é duro, mas não reavaliar estilos de vida quando nelas mergulhados é desperdiçar a face valiosa da moeda. Se o "novo normal" se limitar a máscaras postas, mãos lavadas, distanciamento físico e esperança na vacina, sobreviveremos ao vírus, mas "apenas" isso. E outra voz se junta ao "Coro da Primavera", a de Wilde - "Viver é a coisa mais rara do Mundo. A maioria das pessoas apenas existe".

Muitas - demasiadas, para vergonha nossa! - não podem aspirar a mais. A outras, Deus presenteou com nozes as gengivas nuas.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
09/08/20
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