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IN "PÚBLICO"
16/06/20
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Por um memorial
de homenagem
às pessoas escravizadas
Já é tempo de Portugal olhar de frente para o seu passado não tão glorioso e encará-lo de forma mais abrangente, justa e verdadeira.
“Podemos dizer que devemos aos acontecimentos ocorridos neste
mesmo espaço o que somos hoje e o que fomos sendo desde o século XV.
Aqui se misturaram gentes, culturas e produtos vindos por terra ou
trazidos por naus e caravelas dos lugares mais longínquos que fomos
descobrindo. O nosso cosmopolitismo, para não dizer o nosso
universalismo, começou aqui.”
Estas palavras foram proferidas em 2016 no Terreiro do Paço, em
Lisboa, pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, durante
uma cerimónia oficial de comemoração do Dia de Portugal. Longe de
constituir um caso isolado, o ideário subjacente a este discurso
encontra-se profundamente enraizado na sociedade portuguesa,
constituindo uma pedra angular da identidade nacional.
A narrativa hegemónica sobre a História nacional alimenta-se ainda hoje
da exaltação quase uníssona dos chamados “Descobrimentos” enquanto
epopeia universalista e até humanista, que promove Portugal como o
pioneiro da globalização e o campeão da miscigenação e do encontro de
culturas. Uma gesta gravada para a posteridade em incontáveis monumentos
espalhados um pouco por todo o país, que asseguram uma ubíqua
memorialização deste passado, mas também presente nos discursos
políticos e institucionais, na comunicação social, nos manuais
escolares, nos guias turísticos, em inúmeros eventos culturais, na
toponímia, nos nomes e marcas comerciais, nas conversas de café, à mesa
de jantar.
A construção do discurso histórico sobre a aventura imperial portuguesa
que teve início no século XV tem-se esforçado, com assinalável sucesso,
em embrulhar esse passado num manto de excecionalidade e benignidade. O
“modo português de estar no mundo” e os “brandos costumes” são o garante
desta história feita de descobertas, encontros e “misturas de gentes,
culturas e produtos”, mas nunca de violência, subjugação e escravização.
O lusotropicalismo está vivo e de boa saúde, seja na sua versão
original, seja reciclado nas novas marcas da interculturalidade e da
lusofonia.
Confrontar e superar esta narrativa eurocêntrica, parcial e enviesada
da História é uma tarefa por cumprir, apesar dos persistentes esforços
de alguns setores da sociedade, sobretudo ligados ao ativismo e às
instituições académicas. Existe uma inabalável devoção a um passado
glorioso que não admite contraditório. Aos seus críticos responde com
acusações de anacronismo e ideologização, precisamente dois dos seus
próprios elementos constitutivos. Nesta narrativa única, a escravização
das africanas e africanos são uma gritante ausência ou, na melhor das
hipóteses, um dano colateral relegado para as notas de rodapé da
História de Portugal.
Essa é uma das razões pelas quais um
memorial dedicado às pessoas escravizadas é tão urgente. Já é tempo de
Portugal olhar de frente para o seu passado não tão glorioso e encará-lo
de forma mais abrangente, justa e verdadeira. É altura de combatermos e
denunciarmos o negacionismo histórico e o monopólio da memória que tem
silenciado a história de tantas pessoas, tocadas pelo “universalismo”
português.
Um memorial do passado, do presente e do futuro
Em 2017, a Djass – Associação de Afrodescendentes apresentou ao
Orçamento Participativo de Lisboa uma proposta de criação de um memorial
de homenagem às pessoas escravizadas pelo Império Português. O projeto
foi um dos mais votados e acabou por ser um dos vencedores desta
iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, que o incluiu no seu orçamento
de 2018. O memorial vai ser uma realidade.
O objetivo principal
do memorial é o de prestar homenagem aos milhões de pessoas – na sua
maioria, africanas – escravizadas por Portugal entre os séculos XV e
XIX. É um tributo necessário para evocar publicamente a sua memória e
para romper o silêncio sobre este violento e longo capítulo da história
do país.
A proposta surgiu da sociedade civil por demissão do
Estado. É notória a resistência do Estado português em reconhecer o
comércio de pessoas escravizadas como parte central do seu passado e os
seus legados históricos, designadamente o racismo institucional, como
parte do seu presente.
É forçoso admitirmos que a construção e
manutenção do império se fizeram por via de uma brutal violência e
opressão exercidas contra os povos dos territórios ocupados. Há que
reconhecer que a celebrada grandeza e a riqueza geradas pela expansão
marítima e depois pela ocupação mais efetiva dos territórios descobertos
(poucos) ou invadidos (a esmagadora maioria) assentou na exploração e
na escravização de milhões de africanas e africanos.
Não se trata
de promover uma autoflagelação nacional, nem de exumar os fantasmas do
passado para expiação dos nossos pecados históricos. Trata-se antes de
empreendermos, enquanto comunidade, um ato coletivo de reconhecimento e
reparação.
Reconhecimento do papel central que Portugal
desempenhou nesta brutal empresa de violência e desumanização.
Reconhecimento da resistência e da luta das africanas e africanos contra
essa submissão. Reconhecimento da secular presença negra e africana em
Portugal, em particular na cidade de Lisboa, e do seu contributo para a
cultura, a economia, a sociedade portuguesa.
Reconhecimento das
continuidades históricas que fizeram com que à escravatura tivessem
sucedido novas formas de opressão, do trabalho forçado que se seguiu à
sua abolição e perdurou quase até à instauração da democracia, ao
racismo estrutural que permeia ainda hoje a sociedade portuguesa.
É,
portanto, necessário desfiar o novelo histórico que nos leva da sanzala
esclavagista ao gueto suburbano, do chicote colonial ao bastão
policial, do engenho de açúcar ao estaleiro de obra, da cozinha de ontem
à cozinha de hoje. Para as negras e os negros, a opressão que marcou o
passado esclavagista e colonial de Portugal nunca desapareceu, apenas se
reconfigurou e atualizou.
É por isso que este memorial será não
só uma homenagem às vítimas e resistentes do passado, mas também às
vítimas e resistentes dos dias de hoje.
Àqueles que foram
empurrados para as margens das nossas cidades, transformadas em
territórios de exceção, onde a violência policial e a exclusão social
também têm morada, mas ainda assim resistem no seio de comunidades vivas
e solidárias.
Aos negros e às negras que, tal como os “indígenas”
do passado colonial, são tratados como cidadãos de segunda no seu país,
sendo-lhes negada a nacionalidade portuguesa e os direitos de cidadania
por uma lei injusta e racista, e que ainda assim resistem.
Àqueles
que continuam a ser invariavelmente relegados para a condição do
“outro”, o “estrangeiro”, o “imigrante”, aquele que não pertence ao
tecido social nacional, a este país que ainda não reconhece a sua
diversidade étnico-racial.
Aos que ocupam profissões menos
remuneradas e valorizadas, aos que habitam casas precárias e territórios
segregados, aos que viram as suas casas demolidas, aos que são
discriminados no acesso à educação, à saúde, ao emprego, aos que estão
ausentes ou são invisibilizados em praticamente todas as esferas de
poder. E que, contudo, resistem.
Este memorial é um resgate da
nossa história, evocada para despertar a memória coletiva do país e
confrontar as narrativas que sempre a silenciaram. Queremos ocupar o
espaço público com a nossa memória, bem no centro da cidade de Lisboa, a
“capital do Império” que oprimiu tantos dos nossos antepassados.
Queremos
um monumento que estimule, envolva, interpele, congregue, emocione,
ensine. Que represente uma convocatória à reflexão sobre quem fomos,
quem somos e quem queremos ser, constituindo um contributo para a
redefinição das políticas de memória, a criação de espaços museológicos
dedicados à escravatura e ao colonialismo português e a descolonização
dos já existentes.
Só assim poderemos superar os legados nocivos
do passado, garantir uma efetiva igualdade de direitos e construir uma
sociedade onde não haja lugar para a discriminação contra as negras e os
negros.
IN "PÚBLICO"
16/06/20
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