Pessoas, animais, bom
senso e Código Penal
Qual é a razão pela qual existe a convicção generalizada de que as leis, e em especial as de natureza proibitiva (a penal, por antonomásia), resolvem os problemas sociais, económicos, políticos?
Durante doze anos a fio – desde Janeiro de 1983, data em que entrou
em vigor o Código Penal de 1982, até 1995, ano em que o mesmo Código
sofreu a primeira revisão profunda – que os nossos tribunais aplicaram
serenamente uma lei que punia o facto de alguém cortar o braço a outrem
com uma pena que correspondia a metade da pena aplicável a quem furtasse ao dono desse braço um relógio valioso, sem qualquer violência.
Previa pena de um a cinco anos (ofensas corporais graves) e pena de um a dez anos (furto qualificado, isto é, subtracção sem violência – havendo violência ou ameaça, o crime é técnica e legalmente outro, chama-se ‘roubo’ e tem outras regras).
Esta aplicação decorreu, tanto quanto sei, sem qualquer sobressalto de
(óbvia, em meu entender) inconstitucionalidade. Denunciei a situação em
vários contextos, em aulas na Faculdade de Direito de Lisboa, em
colóquios e conferências e em publicações e escritos. Ninguém, que me
lembre, pareceu incomodar-se muito com isso. Em 1995, descobriram, com
espanto, que a escala de penas no Código Penal era absurda e
escandalosa. Basta ler as Actas desse período para perceber esse
espantoso espanto – o exemplo que dei acima é apenas isso, um de entre
muitos possíveis. Também era verdade que furtar um objecto durante a
noite, ou fechado em um cofre, ou no altar de uma igreja, ou… – o Furto
era o crime, no Código Penal de 1982, que tinha a lista mais longa e
mais pormenorizada de circunstâncias agravantes – era mais grave (um a
dez anos) do que o crime de violação de uma mulher (dois a oito anos de
prisão).
O problema derivou, em larga medida, da forma como a Assembleia da
República, quando aprovou a Lei de autorização legislativa (o Código
Penal que nos rege é um Decreto-Lei, não uma Lei em sentido formal), não
reparou na absurda desproporção das penas entre os crimes contra as
pessoas e os crimes contra o património, consequência da destruição da
lógica interna do Projecto de Eduardo Correia, professor catedrático de
Direito Criminal da Universidade de Coimbra que, a pedido do então
ministro Antunes Varela, apresentou um Anteprojecto visionário em alguns
aspectos (limites máximos da pena de prisão), porventura ‘ingénuo’ ou
mesmo ‘crédulo’ em outros (a reinserção social como objectivo das penas e
em particular da pena de prisão, conversa que se mantém no discurso
oficial até hoje) e conservador ou mesmo ‘reaccionário’, diríamos talvez
hoje, em outros (tratamento do crime de estupro, por exemplo; ou
regulação da prostituição). A versão originária é de 1966, no que
respeita à chamada Parte Especial, que é a parte do Código que define os
vários tipos de crime: homicídio, furto, violação, falsificação, dano,
injúrias e por aí fora. A da Parte Geral data de 1963. A chamada Parte
Geral de um Código Penal é a que define os princípios, as regras sobre
tentativa e comparticipação, os prazos de prescrição, os limites gerais
das penas, a possibilidade de pessoas colectivas serem criminalmente
responsáveis, uma das novidades mais recentes no nosso sistema jurídico,
etc.
Até à aprovação do Código na Assembleia, já em Democracia, os
Projectos de Eduardo Correia sofreram mil alterações, revisões,
reconfirmações. Como aliás seria natural e inevitável. Mas não deixa de
ser notório que a discussão parlamentar foi estranhamente limitada e
circunscrita e o consenso curiosamente quase unânime – se bem recordo,
praticamente discutiu-se a questão da interrupção da gravidez e a
hipótese de criminalizar o não pagamento de salários a trabalhadores.
Sobre as questões de fundo, a chamada ‘filosofia penal’, designadamente,
a questão crucial dos chamados fins das penas, aos costumes nada
disseram. Ou melhor, disseram todos: toda a Assembleia achou que o
projecto que foi discutido – recorde-se que se tratava do pedido de
autorização legislativa por parte do Governo – era tecnicamente
excelente e estava tudo (ou quase tudo) muito bem.
E é preciso
lembrar ainda que o processo legislativo acaba, em 1982, com a aprovação
na Assembleia e depois a aprovação do Decreto-lei do Governo e sua
publicação no Diário da República, numa fase em que a vox populi
está muito preocupada com os crimes contra o património e, talvez
ironicamente, com a supostamente excessiva liberalidade da lei penal que
aí vinha.
E um pormenor ‘picante’: o início do texto, num certo
momento do processo legislativo, passou a citar Michel Foucault,
certamente para um aggiornamento das referências intelectuais e
políticas. Na versão definitiva, a qualidade dos Projectos é avalizada,
na Introdução, pelos nomes de “proeminentes cultores da ciência do
direito penal”, como Hans-Heinrich Jesckeck, Marc Ancel e Pierre Canat.
Hoje discute-se de novo toda uma série de questões sobre leis penais (o
CP é apenas uma de entre muitas, deveria ser o ‘centro dos centros’ mas,
por várias razões, isso não acontece – ou cada vez acontece menos).
Tipicamente, as questões – sobre corrupção e crimes conexos; sobre
crimes sexuais; sobre maus-tratos a animais, sobre violência doméstica
ou violência de género – centram-se em propor ou reclamar um aumento de
penas de prisão ou a criação de novas penas. É o caso da castração
química para crimes de abuso sexual, proposta claramente inconstitucional
do chamado ‘Chega’, que em má hora chegou à Assembleia da República,
ainda que legitimamente eleito pelos portugueses que, provavelmente
descontentes com os ‘políticos’ e a política e com os efeitos de
políticas de austeridade nas suas vidas, se deixaram convencer pelo
discurso demagógico, populista e incoerente do candidato, hoje deputado único desse partido.
Neste momento, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias da Assembleia da República já se pronunciou e
ficou nas mãos do presidente da mesma Assembleia a decisão de levar ou
não a plenário essa Proposta de Lei do ‘Chega’.
Em Portugal,
legisla-se muito, designadamente em matéria penal, “à flor da pele”. A
expressão é de Manuel da Costa Andrade, grande cultor de matérias
constitucionais e penais, deputado à Assembleia da República durante
longos anos (eleito nas listas do PSD) e hoje presidente do Tribunal
Constitucional. E, como em muitos outros países, existe uma convicção
generalizada de que é essencialmente o Direito e as suas regras que
regulam o Mundo, uma curiosa ilusão dos juristas mas também do senso
comum – daí a sua persistente força – e que, mais especificamente, a
forma de resolver um problema é proibir e, se possível, criminalizar uma
actividade, ou agravar penas se já existirem… Ou, em alternativa muito
portuguesa, criar mais uma comissão, um conselho, uma alta autoridade ou
uma estrutura de missão de qualquer coisa.
Por vezes, sobretudo
em certos assuntos, diz-se: a lei existe mas não é aplicada. Ou não é
aplicada com suficiente severidade e eficácia.
Numa variante também corrente: é preciso “mudar as mentalidades”. Uma
curiosa ideia, como se as alterações legais não ajudassem a mudar
mentalidades e vice-versa. Os exemplos mais óbvios serão talvez as
alterações profundas em matéria de leis da Família (1976, Constituição
da República Portuguesa, em Democracia; 1977, Revisão do Código Civil) e
as sucessivas alterações igualmente profundas em matéria da agora
chamada ‘violência doméstica’.
Vamos ao Código Penal: Qual é o real efeito de agravação das penas para certos crimes? Resposta: Ninguém sabe.
Qual a potencialidade da criação de novas penas para certos crimes? Resposta: Ninguém sabe.
Qual
é a razão pela qual existe a convicção generalizada de que as leis, e
em especial as de natureza proibitiva (a penal, por antonomásia),
resolvem os problemas sociais, económicos, políticos?
Resposta:
Sabemos alguma coisa, sobretudo da Ciência Política, da Sociologia, da
Criminologia – nas suas versões mais críticas e complexas, as únicas que
realmente adiantam algumas coisas no nosso entendimento dos fenómenos
criminais e seu controlo, mas ainda muito pouco. Porquê?
IN "PÚBLICO"
27/02/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário