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IN "A BOLA"
31/12/19
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Jorge Jesus na
“sociedade aprendente”
A
Comunicação Social não cessa de nos repetir uma afirmação convicta de
José Saramago: “o homem mais sábio, que eu conheci, em toda a minha
vida, não sabia ler nem escrever”. Cervantes escreveu o Dom Quixote,
onde surge a figura do Sancho, que faz desta obra imorredoira uma
alegoria magistral do permanente conflito entre a teoria e a prática.
Eu, um permanente estudante de filosofia (e peregrinando também, com
devoção, nos melhores literatos portugueses) já escrevi, em 1977, no meu
livrinho A Prática e a Educação Física (Compendium,
Lisboa): “De facto, a unidade prática-teoria constitui uma totalidade em
que à prática assiste papel fundamental, pois é nela que se reconciliam
e interfecundam o objectivo e o subjectivo”. Nas minhas aulas, sugeria
aos alunos que “a prática é mais importante do que a teoria e a teoria
só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática”. E chegava
mesmo a dizer-lhes: “Quem só teoriza não sabe, mas quem só pratica
repete”. Propunha eu, assim, aos alunos a indissolúvel ligação
prática-teoria, dando à prática especial relevância, pois que a prática,
mal ou bem, transforma e a teoria, por si só, pode não passar de uma
acumulação pomposa de palavras, sem quaisquer efeitos práticos. O que
era (é) o conselheiro Acácio senão um palavroso, adulado, reverenciado
pelo que dizia, mas simultaneamente de uma flagrante inoperância? Todo o
teórico, sem ligação à prática, que julga que tem a Verdade e que a
pode dizer, com irrefutável certeza, julga-se um Sol... mas anda na lua!
A grande diferença, em Habermas, entre teoria tradicional e teoria
crítica, reside no facto de a teoria crítica visar a emancipação do ser humano,
mediada historicamente, ou seja, hoje, uma teoria deverá apresentar-se
com um interesse prático de transformação. A teoria é necessária,
indispensável, mas só como “razão prática”, no meu pensar, se torna
visível.
Jorge Jesus exige, para sua justa interpretação, o
concurso de inúmeros fatores, como é de uso fazer-se com uma figura
pública e de grande relevo, como ele é (embora todos nós sejamos vários
homens num homem só). O que me ocorre, desde já destacar é que, na sua
profissão, é um “prático”: foi jogador de futebol e é, hoje, um
treinador de futebol que o mundo começou a reverenciar. Os seus
conhecimentos resultam da sua prática diária, quer como antigo jogador,
quer como atual treinador. E é neles que ele acredita, porque foi com
eles que chegou aos cumes mais altos do futebol nacional (é o treinador
mais titulado, em Portugal, com 11 títulos em quatro provas) e
internacional. No livro de Gustavo Pires e António Cunha, Agôn, Homo Sportivus – Estratégias & Estratagemas (Edições
Afrontamento, Porto, 2017) sustentam os autores: “quando se trata da
própria equipa, o treinador deve considerar os seguintes aspectos: o
desenvolvimento pessoal de cada jogador; a dinâmica de relações, no
grupo; a organização e o planeamento do trabalho; a partilha das
derrotas e dos êxitos; o processo de autoavaliação e controlo” E
continuam Gustavo Pires e António Cunha: “Nas organizações aprendentes
(típicas da sociedade pós-industrial, onde as organizações se mostram
capazes de criar sistemas de auto-aprendizagem) a espiritualidade da
liderança, enquanto partilha de valores, de crenças, de perspetivas de
vida e de auto-conhecimento coletivo, é uma realidade que pode
determinar as condições propícias à organização da vitória”. Quando lhe
cabe o encargo de uma conferência de imprensa, estes são assuntos de que
pouco se ocupa o Jorge Jesus. Risonho, flamante, fala dos seus méritos
que são muitos, de facto. Fala dos seus méritos... porque, como já o
acentuei, é na sua própria prática que ele verdadeiramente acredita! Não
tem grande cultura livresca, mas tem um conhecimento tão meticuloso e
tão intensamente vivido dos problemas técnicos e táticos do futebol, que
imediatamente deslumbra os jogadores que, na sua esmagadora maioria, se
rendem à sua teorização.
E, porque é um homem onde as “razões do
coração” predominam sobre as “razões da razão”, dificilmente o seu
comportamento merece uma concordância ou uma discordância generalizadas.
No entanto, não é verdade que a grandeza de uma obra se mede mais pela
pluralidade das reações que suscita do que pelo afinado e vulgar coro de
mesuras, venenoso obséquio que mais empobrece do que enriquece um
objeto de estudo? E, porque é cordialmente extrovertido, Jorge Jesus não
sabe furtar-se ao risco de mostrar quem é e como é. Quem é?
Um prático genial, que faz o que muitos (muitíssimos) letrados não
sabem fazer: ser líder magistral de uma equipa de futebol de alta
competição. Tendo chegado ao Benfica, já com mais de 50 anos de idade,
fica na história deste Clube como o treinador de futebol que mais
troféus conquistou: 3 Ligas, 1 Taça de Portugal, 5 Taças da Liga e 1
Supertaça. É verdade que o seu trabalho não seria tão vivo e fecundante,
se não beneficiasse do apoio do presidente Luís Filipe Vieira que já
logrou, no Benfica, obra de tamanho relevo, que a obra feita ultrapassa o
criador e fixa-se na perenidade deste glorioso Clube. No entanto, a
exuberante competência de Jorge Jesus também deixou embevecida e
encantada a esmagadora maioria dos benfiquistas. Não há que negá-lo!
Chegou, há meia-dúzia de meses, ao Brasil, para treinar o Flamengo e fez
o que só um génio saberia fazer: venceu o Brasileirão (a 16 pontos do
segundo classificado), conquistou a Taça Libertadores e jogou, de igual
para igual, com o Liverpool, no jogo final do Mundial de Clubes. É, à
sua maneira, um hermeneuta do futebol, como não sei se outro haverá no
mundo todo. Como é? Emotivo até à raiz dos cabelos,
romântico impenitente, cavaleiro andante de uma grande paixão pelo
futebol, o atual treinador do Flamengo do Rio de Janeiro é, sem possível
contestação, um treinador de grande improvisação e talento, de
refulgente audácia e nervo. Uma ou outra palavra mais brejeira
representava nele (já não representa hoje, porque o modo como se
expressa, atualmente, é de muito melhor qualidade) o primado do conteúdo
sobre a forma, ou seja, o que ele quer dizer da sua vivência do
futebol parece não caber no alfabeto. O seu modo de interpretar o
futebol é o que lhe interessa exprimir, salientar e cultivar. Recordo o
verso de Régio: “mas eu que nunca principio nem acabo” é o que Jorge
Jesus diz de si mesmo, ao falar de futebol...
Conheci Jorge
Jesus, porque de mim se aproximou (ou melhor: do Homero Serpa e de mim),
era ele então o treinador do C.F.”Os Belenenses”. E ficámos amigos, até
hoje, até sempre. Durante um ano, fui seu adjunto e revi com particular
atenção o que já aprendera com José Maria Pedroto e José Mourinho.
Jorge Jesus, um profissional sem licenciatura universitária? Mas de
prática sublime, quero eu dizer: não trabalha por imitação, ou por moda.
Como Hegel dizia de si mesmo: “Eu fui condenado a ser filósofo”. Ele
poderá dizer: “Eu fui condenado a ser treinador de futebol”. Ou seja,
ele treina, porque não pode fazer outra coisa. É um grande treinador de
futebol. Entre os melhores do mundo. Indubitavelmente. Muito ou pouco
letrado, não importa! Ele é! E vai ser mais porque, após as vitórias no
Brasileirão e na Libertadores, encontrou novas pistas e conexões e uma
nova e nunca apaziguada certeza de que, esteja onde estiver, trabalhe
onde trabalhar, será sempre um adestrado fazedor de vitórias. E a teoria
que norteia a prática? A teoria, para ele, implica “aparição” na
fenomenalidade da sua prática. É, porque pratica, que teoriza. Aliás,
entre a instrução e o conhecimento a relação não me parece tão nítida,
pois que o especialista, em qualquer área do saber, não se reduz à
cognição. De facto, sem emoção não há aprendizagem. Quando Assman nos
fala de “sociedade aprendente”, ele estabelece uma sólida relação entre
vida e aprendizagem. A educação básica, universal e obrigatória; o
ensino universitário… mas, na “sociedade aprendente”, a vida ensina mais
do que a escola. O desenvolvimento da escola tem de radicar,
atualmente, no desenvolvimento social e político. Também, quando penso e
repenso a “motricidade humana”, concluo sempre que a ação é inter-ação.
O “eu” não existe, se não for alimentado por um “tu”. Por isso, o
desporto é naturalmente solidário. Como o Jorge Jesus.
Evoco,
agora, o conceito de “horizonte” de Gadamer, já largamente utilizado
por Nietzsche e Husserl e que, na “Verdade e Método”, Gadamer retomou:
“Horizonte é o círculo da visão que alcança e encerra tudo o que é
visível, desde um determinado ponto”. Com uma cultura empírica,
experiencial, imediatista e pragmática, há quem saiba muito de futebol. O
conhecimento científico é neutro, objetivo e objetivante. É
indispensável, mas não é o suficiente para compreender um ser humano.
Para compreender-se uma pessoa, necessário se torna uma relação vital
com ela. Caso contrário, uma ciência empírico-formal basta. Só que a
pessoa é sempre um sujeito, com algumas “razões da razão” e inúmeras
“razões do coração”, para além de condicionalismos de vária ordem. No
ato de conhecer, não existe um acesso direto à realidade, sem passar
pelo sujeito. Perceber, para Maurice Merleau-Ponty, “é tornar presente
qualquer coisa, com a ajuda do corpo”. Uma simples dor de dentes pode
transformar-se num tremendo “obstáculo epistemológico”. Concluindo: sou
eu, e não só a minha razão, quem compreende. Por isso, só interpreta
quem compreende e só compreende quem interpreta. Um exemplo: o Jorge
Jesus tem uma extraordinária leitura de jogo (extraordinária, podem
crer) porque ama o que faz, como treinador de futebol. E, porque ama
muito, compreende melhor. Etimologicamente “com-preender” sugere “com um
sujeito” a quem se está (ou se fica) preso. Jorge Jesus compreende os
seus jogadores, porque os ama e com eles sabe comunicar. Não há nele
tão-só uma “racionalidade comunicativa”, mas uma entrega total, onde há
matéria, vida, emoção (muita emoção) e espírito. Ele comunica com
palavras, com os gestos, com o corpo todo e a alma inteira. Jorge Jesus,
servindo-me das palavras de Cristo, “faz novas todas as coisas”. E
porquê? Porque trouxe ao futebol um novo modo de ”estar”. Este é o
segredo das vitórias de Jorge Jesus. Aliás, há muito eu venho dizendo: é
o homem (ou mulher) que se é que triunfa no treinador que se pode ser.
Reside aqui, se bem penso, o segredo das vitórias de Jorge
Jesus.
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
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31/12/19
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