.
* Deputada pelo PS na Assembleia da República
IN "VISÃO"
07/01/20
.
O bispo do Porto
e a democracia
Um discurso de defesa das instituições não estaduais que passe pela diabolização do Estado social é um discurso extremista que se vira contra quem o profere
Há uns dias, D. Manuel Linda, bispo do Porto, em entrevista ao Público causou
polémica ao afirmar que “o Estado não é pessoa fiável”. As reações
foram epidérmicas. Portugal tem memória fresca da noite escura sem
Estado social, da miséria, do País da caridade, pelo que muitos se
ergueram em defesa dos serviços públicos.
Ninguém nega as dificuldades que esses serviços atravessam
nem a importância das instituições particulares de solidariedade social,
mas um discurso de defesa das instituições não estaduais que passe pela
diabolização do Estado social é um discurso extremista que se vira
contra quem o profere.
Para mais, exigir financiamento das instituições
que trabalham sob o chapéu da Igreja com o argumento de que o Estado não
é fiável é um desplante. Em última análise, laborando no magnífico
argumento até à exaustão, que modelo de democracia defende o bispo do
Porto? Aquele em que o Estado, essa pessoa não fiável, recua nas suas
funções sociais e as entrega à fiável ICAR?
Não há instituições perfeitas, mas continuo a defender que o
principal garante da igualdade material em todos os seus domínios seja o
Estado democrático que emana de todos nós. Chama-se democracia, pois.
A má relação do bispo do Porto com a democracia também se manifesta
quando duvida da “legitimidade social” dos deputados para legislar em
matéria de eutanásia. A esse respeito, de resto, junta-se à orbe dos
desonestos intelectuais que negam um debate de ideias esclarecedor,
preferindo comparar quem defende a despenalização da morte assistida em
situações especiais com Hitler, lembrando que o facínora não estava
sozinho quando decidiu que determinadas vidas não eram dignas de serem
vividas.
Começando pela “legitimidade social”, convém recordar a
essência representativa dos deputados, eleitos pelo Povo, sendo a
matéria da eutanásia, por excelência, uma matéria da
competência reservada do Parlamento. Pode concordar-se ou discordar-se
da despenalização da eutanásia em situações especiais, estamos cá para o
debate, mas negar-se que a Constituição atribui à Assembleia da
República mandato para legislar, querendo, sobre a matéria, dizendo sim
ou não, é estar fora da democracia.
Quando discutimos a eutanásia na última legislatura, ouvimos, ao
longo de três anos, num debate muito rico, argumentos a favor e contra
num quadro de racionalidade que a todos aproveitou. Na margem ficaram
aqueles que desqualificaram o debate, acusando os defensores da
eutanásia de serem como Hitler, de quererem decidir que há vidas mais
dignas do que outras, de quererem “matar” velhos e doentes.
Ora, o que estamos a fazer é precisamente partir do princípio de que
todas as pessoas têm a mesma dignidade e autonomia nessa dignidade.
O Estado não pode rejeitar a autonomia das pessoas para fazerem as
suas escolhas pessoais de acordo com os seus valores ou, caso contrário,
teríamos uma conceção moral dominante imposta ao resto da sociedade,
precisamente como acontecia no Terceiro Reich.
Quando se pretende regular as situações especiais em que a prática da
eutanásia não é punível, o que se está a fazer é a reconhecer o que
decorre dos valores e princípios constitucionais. Isto é, não está em
causa um desrespeito da vida por parte do Estado, porque é o próprio
sujeito autónomo que deseja a eutanásia, sujeito esse que, tendo
liberdade para tomar decisões vitais ao longo da vida sem possibilidade
de interferência por parte do Estado, também tem liberdade para ter um
espaço legalmente reconhecido de decisão quanto à sua própria morte.
A pessoa que pede a eutanásia está numa situação de sofrimento
extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, pelo que
precisa, justamente, de ajuda para concretizar um ato que não deixa de
ser, absolutamente, uma decisão individual.
Por outro lado, a Constituição tem parâmetros de constitucionalidade –
o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, este
último fundador da República – que nos obrigam a fundamentar a não
violação da Lei Fundamental muito para além de uma alegação de liberdade
geral de ação que não se aplica ao caso, dada a circunstância
específica do doente.
Para que a intervenção, a pedido, de profissionais de saúde seja
despenalizada sem risco de inconstitucionalidade por violação do
princípio da dignidade da pessoa humana, a lei tem de ser rigorosa.
Tudo isto pode e deve ser objeto de debate. Caricaturar e falsear o debate é um péssimo serviço à democracia.
* Deputada pelo PS na Assembleia da República
IN "VISÃO"
07/01/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário