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Vamos aos números.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/01/20
Taxa das celuloses:
uma escandalosa guerra
no Governo
Causa algum choque ler o editorial do Público de ontem sobre um tema
crucial para o país - a floresta. Como assinalei há duas semanas, tudo
começa com uma notícia da jornalista Helena Pereira, no próprio Público,
a 30 de Dezembro, sobre o Governo se ter esquecido de criar uma taxa
sobre as indústrias intensivas da floresta. A medida visaria financiar
uma parte do Fundo Florestal Permanente cujo objetivo é dotar o país de
um verdadeiro mosaico florestal e contribuir para os custos de prevenção
contra incêndios.
A tal taxa, aprovada no Parlamento, ficou na
gaveta. Explicação: em 2019 o ministro Capoulas Santos ainda tinha a seu
cargo a floresta, mas resolveu nada fazer. Entretanto a Secretaria de
Estado das Florestas passou para o Ministério do Ambiente e, nos
dossiers de transição entre ministérios, o assunto não consta.
Paradoxal, mas verdadeiro.
Mais paradoxal é a explicação do
Público sobre a posição do ministro do Ambiente, Matos Fernandes: "Em
vez de assumir o disparate da medida e de reconhecer que o seu
antecessor, Luís Capoulas, fez-se vítima de amnésia selectiva para que
caísse da agenda do Governo, não: disse que ainda se ia a tempo de se
avançar com a dita taxa".
Manuel Carvalho conhece bem Capoulas
Santos e quando avança com esta segurança sobre a "amnésia selectiva" do
ex-ministro da Agricultura, ficam poucas dúvidas sobre a
verdade/desfaçatez do caso. Acrescenta, aliás: "O seu "esquecimento" foi
uma forma de se furtar ao disparate", diz Manuel Carvalho. Ou seja, uma
guerra surda no seio do primeiro Governo PS. Uma ofensa encapotada ao
primeiro-ministro e ao Parlamento.
Sobra agora a questão seguinte -
sabermos se deve ou não existir uma taxa sobre estas indústrias que vá
buscar dinheiro para minimizar o impacto das monoculturas florestais no
território. O título do editorial de ontem do Público toma partido:
"Mais uma taxa contra quem cria riqueza".
Ora, custa a crer que
estejamos em 2020 e a síntese do problema seja esta, depois de tudo o
que sucedeu em Pedrógão e no fatídico domingo 15 de Outubro de 2017;
depois da confirmação insofismável das alterações climáticas; e em plena
crise australiana. Afinal, para o Público, o problema é ideológico...
Vamos aos números.
As indústrias de base florestal - da madeira à cortiça,
mobiliário e pasta de papel - valeram mais de nove mil milhões de euros
de negócios em 2017, de acordo com os números da Direção Geral das
Atividades Económicas. Os negócios da cortiça, papel e madeiras valem
10% das exportações portuguesas (quase seis mil milhões). Destas, a
cortiça exportou em 2017 aproximadamente 800 milhões, valores idênticos
ao papel e cartão, enquanto a pasta de papel se terá cifrado pelos 400
milhões.
Importante para o país? Muitíssimo. Mas o impacto no
território não pode ser grátis. E, além disso, as diferenças entre os
negócios são óbvias, facto que a nova taxa tem de levar em conta.
O
sobreiro (cortiça), por exemplo, é uma espécie mediterrânica, que
favorece o território e o ecossistema, e nos faz exportar altíssimo
valor acrescentado em equilíbrio com a natureza.
Pelo contrário, o
eucaliptal, como espécie exótica, ocupa o território, mas é um deserto
de árvores onde não há biodiversidade nem uma cadeia trófica contínua.
Os negócios em redor dos seus produtos são meramente oportunísticos -
continuarão a ser produzidos enquanto a terra tiver minerais e houver
água para o eucalipto crescer. E depois deixarão um gigantesco
território improdutivo para décadas.
Já a fileira do pinhal tem
riscos de incêndio muito idênticos ao do eucaliptal mas, pelo menos, o
pinheiro é uma árvore que se integra na nossa paisagem natural, ainda
que todas as monoculturas sejam em si mesmas um perigo.
Regressemos à "taxa das celuloses". Em conjunto, a Proteção Civil
custa 350 milhões de euros por ano e é paga apenas pelos impostos de
todos os portugueses através do Orçamento de Estado.
Questão: as
indústrias altamente rentáveis não podem contribuir com uma pequena
margem dos seus resultados para a regeneração do território? É esta a
base lógica da taxa: o território só arde com esta intensidade e
frequência porque estamos perante vastíssimas extensões de monoculturas
de eucalipto (e pinheiro). Não fosse a sucessão de terrenos com as
mesmas espécies arbóreas e os fogos não teriam este alcance destruidor.
Simplificando.
Quem beneficia com este concentrado de matéria-prima barata e altamente
inflamável ao longo do território? Estas indústrias, sobretudo as
celuloses, cuja pegada ecológica é devastadora.
Portanto, sejamos
claros: é completamente errada a ideia de que esta é "Mais uma taxa
contra quem cria riqueza". Esta é uma taxa que tenta minimizar o custo
dos incêndios aos contribuintes e acrescentar prevenção e
renaturalização ao território abandonado.
Além disso, o fator de
risco destes negócios da floresta só está a correr por conta dos
contribuintes. Já os lucros estão disseminados nestas empresas cotadas
em Bolsa cujos resultados vão para acionistas anónimos a quem mais 1%
(ou 3 ou 5%) de lucros não fará substancial diferença.
Esta nova
taxa beneficiaria o Fundo Florestal Permanente com a missão de instalar
no território o mosaico que torne o país mais vivo e seguro: agricultura
de montanha, pastagem, folhosas e resinosas autóctones (sobreiros,
carvalhos, castanheiros, etc...). Ao mesmo tempo, o eucalipto - em vez
de continuar a expandir-se - tem de aumentar a produtividade nos
terrenos onde já está plantado.
Entretanto, o que se passa com o Fundo Florestal Permanente que
Capoulas Santos não financiou melhor? O Plano de Atividades de 2019
mostra que o orçamento se limitou a 62 milhões de euros. De onde vem o
dinheiro? As duas principais rubricas são "28 milhões de impostos sobre
produtos petrolíferos e energéticos" - ou seja, de todos os portugueses
que compram combustíveis - e "15 milhões do Fundo de Solidariedade da
União Europeia".
Como é claríssimo, este dinheiro é quase zero.
Portanto, se não são as indústrias a pagar um verdadeiro fundo para a
floresta (já para não falar da Proteção Civil), então quem é?
As
alterações climáticas não perdoam. Podemos continuar a falar das
"limpezas do mato" ou dos corredores corta-fogo, e de mais e mais e mais
meios de combate. Mas tudo isto é negar a evidência: os fenómenos
extremos estão cada vez menos à escala humana. Se mantemos dezenas de
quilómetros de eucaliptais e pinheirais sucessivos, estamos a promover
autoestradas de fogo. Chegou a hora de nos salvarmos coletivamente. Ou
não?
Notas extra:
calcula-se que já morreram 28 pessoas na Austrália e perto de mil milhões de animais. Mil milhões.
Na Califórnia é o caos, sistematicamente.
A floresta ardeu em França, em 2019, como já não se via há muito tempo.
E nós, por cá, discutimos "amnésias selectivas".
Enquanto só morriam bombeiros em Portugal, ninguém acreditou no desastre
- era má preparação... Entretanto morreram 115 pessoas em 2017 e mesmo
assim, três anos depois, esta continua a ser uma luta ideológica... E a
realidade? Tornou-se invisível?
De facto, as grandes corporações deste negócio já mandam muito mais do
que supúnhamos. Conseguem pintar de cor-de-rosa até as chamas do
inferno.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/01/20
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