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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
19/10/19
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Ecografia ao caso
do bebé Rodrigo
É cedo para ter qualquer opinião sobre a conduta do médico que fez o seguimento da gravidez, mas é tarde para concluir sobre a opacidade deliberada e a falta de sindicância de uma classe que deixa sempre a impressão de um corporativismo imperial. E a desproteção dos cidadãos face a ela.
Oito*. É o número a que se chega fazendo as contas às queixas
reportadas pela própria Ordem dos Médicos, ao longo do tempo, contra o
obstetra Artur Carvalho.
Em 2011, quando foi noticiado o
caso de uma bebé nascida com malformações graves no hospital
Amadora-Sintra após a mãe ser seguida por Artur Carvalho, este tinha
sido já objeto de duas queixas, às quais se acrescentava a então
conhecida; agora, a Ordem diz que existem quatro - supondo-se que a essa
deva somar-se a relativa ao bebé Rodrigo, que a 7 de outubro nasceu no
Hospital de São Bernardo, em Setúbal, sem olhos, sem nariz e sem parte
do crânio e do cérebro.
É uma questão de aritmética. Que pode, claro, estar errada, porque as
informações em que assenta são imprecisas. E são-no porquê? Por um único
e incompreensível motivo: porque, apesar da gravidade da
situação e do alarme social que causa, a Ordem dos Médicos não achou
necessário esclarecer estas duas coisas tão simples: quantas queixas
foram até hoje apresentadas contra este clínico, que objeto tiveram e
que resultado determinaram.
Essa ideia de encobrimento, corporativismo exacerbado e de perigo adensa-se perante afirmações de Luís Graça,
atual presidente da Sociedade de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal,
ex-presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da
Ordem dos Médicos (2000-2009), à Lusa, segundo as quais há muitos
obstetras "a fazerem ecografia, nomeadamente morfológica - que
diagnostica malformações - e que não têm competência para isso".
Segundo
Graça, não basta ter a especialidade de obstetrícia para saber fazer e
interpretar as ecografias em causa, fundamentais para detetar
malformações ou anomalias nos fetos, mas é necessária uma pós-graduação
para o efeito. E adianta que enquanto esteve à frente do colégio da
especialidade tentou criar "uma competência específica" para a ecografia
obstétrica mas que não houve consenso nesse sentido.
A crer em
Luís Graça, há mais de dez anos que esta questão foi debatida no seio da
Ordem e identificado o problema, porém, incrivelmente, nada foi feito
para certificar que não há médicos sem formação a fazer ecografias das
quais depende o despiste atempado de anomalias nos fetos.
Isto apesar de uma norma de 2013 da Direção-Geral da Saúde sobre exames ecográficos na gravidez especificar que estes "devem
ser executados por médicos com treino específico e devidamente
certificados para o efeito por entidade idónea e pela Ordem dos Médicos,
devendo ser estabelecido um período de transição para este efeito
(...)".
Aparentemente, estaremos ainda, seis anos depois,
em "período de transição". Significa isso que não existe certificação
para ecografia obstétrica? Eis outra questão à qual se esperaria que a
Ordem dos Médicos desse resposta. Deveria fazê-lo, obviamente, sem
necessidade de ser perguntada sobre isso. Mas, pelo contrário, trata
tudo como segredo. Quem esteja mal informado até pode achar que a
Ordem é uma organização de direito privado, uma empresa ou uma
associação com o objetivo de defender os direitos dos médicos. Porém
não; trata-se de uma pessoa coletiva de direito público, como estatuído
na Lei n.º 117/2015, que consigna o Estatuto da Ordem dos Médicos. Uma
organização na qual o Estado delega o poder não só de acreditar pessoas
para o exercício da medicina como de fiscalizar esse exercício, zelando
pela sua qualidade e honorabilidade. E que tem a obrigação legal de
"contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos
doentes".
Talvez a Ordem precise de ver na lei que a rege
também a obrigação de transparência e esclarecimento que tal estatuto
impõe. Até lá, teremos de nos contentar com fazer um puzzle de informações que nos vão chegando de várias origens. Pelas quais ficámos
também a saber que nem todos os aparelhos de ecografia atualmente em
utilização garantem fiabilidade. Que uma grávida pode ter o azar de ir
parar às mãos de alguém que não investiu numa máquina melhor - e que
nada a adverte em relação a isso.
Como ninguém a informa de que uma ecografia morfológica de segundo
trimestre feita corretamente deve demorar pelo menos uns 20 minutos. E
que no respetivo relatório, de acordo com a citada norma da
Direção-Geral da Saúde, deve ser assinalada a normalidade,
anormalidade ou não visualização dos órgãos, da face, do perfil, do
crânio, da coluna, dos ventrículos cerebrais, e dos genitais externos, e
apresentadas medições de todos os segmentos dos membros superiores e
inferiores. Mas, infere-se do documento, não será essa a regra, já que
este refere dever "ser incentivada a normalização dos relatórios
ecográficos a fim de garantir a disponibilização dos vários parâmetros
analisados e da sua interpretação, de uma forma equitativa e
uniformizada".
Aqui chegados, podemos mandar as
mãos à cabeça: não há certificação para fazer ecografias (ou há, e não é
obrigatório tê-la para as fazer); os aparelhos ecográficos podem não
ser grande coisa; os relatórios não estão normalizados. Mas há mais. Consultando decisões judiciais sobre casos similares ao de Rodrigo e Luana, descobre-se, por exemplo num acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa de 2014, que não existe obrigação de
gravação de todo o procedimento ecográfico (até pode não ser gravado de
todo, segundo o que ali se lê) e, portanto, não é obrigatório entregar
um DVD com toda a ecografia à grávida. O que significa que se houver um
problema pode não haver qualquer meio de prova, ou a prova estar
adulterada (por exemplo se só parte do procedimento tiver sido gravada).
Claro
- é importante frisar isso - que está tudo por averiguar no caso de
Rodrigo. Claro que pode não ter havido má prática nem negligência. E que
pode vir a concluir-se que o médico que seguiu a mãe tem a certificação
necessária, que o aparelho que usou não está ultrapassado, que os seus
relatórios seguem os preceitos ditados pela DGS e que existe até um DVD
de todo o procedimento. Mas, a ser assim, sabemo-lo agora, foi por
acaso. E por acaso não chega.
*Jornalista
* NOTA: atendendo às declarações do bastonário da Ordem dos Médicos na
conferência de imprensa que deu a 18 de outubro, serão afinal pelo
menos nove as queixas entradas na Ordem, ao longo do tempo, contra o
médico Artur Carvalho, a última das quais apresentada pela própria Ordem
e dizendo respeito ao bebé Rodrigo.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
19/10/19
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