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"DIÁRIO DE NOTÍCIAS
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"Honra de juíza".
Violência doméstica nada teve a
ver com saída da juíza Sottomayor
Ao contrário do que tem sido noticiado, a proposta de redação do acórdão sobre a lei dos metadados, de que Clara Sottomayor era relatora, não mencionava violência doméstica. Magistrada saiu por considerar estar em causa a sua "honra de juíza". E já pediu audiência ao Conselho Superior de Magistratura para expor o caso.
Clara Sottomayor, cuja renúncia ao lugar de juíza conselheira
no Tribunal Constitucional, onde estava desde 2016, por indicação do BE,
foi conhecida na passada quinta-feira, pediu uma audiência ao Conselho
Superior de Magistratura para expor o seu caso perante aquele órgão de
governo e fiscalização da judicatura. A magistrada, que tem recusado
comentar o assunto e voltou a exprimir essa recusa ao DN, considerará
ter de se defender face às versões que foram postas a circular sobre os
motivos da sua renúncia e, como está obrigada ao dever de reserva,
precisa de autorização do CSM para poder falar do assunto. Estará em
causa a defesa da sua "honra de juíza" e da sua independência perante os
seus pares.
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Terá
sido essa sua noção de honra e de independência que levou a magistrada a
apresentar a renúncia, a primeira da história daquele órgão judicial
criado pela revisão constitucional de 1982 e em funcionamento desde
1983. "Não posso ser relatora de um acórdão escrito por outros e ao qual foi retirado tudo o que era meu. É a minha honra de juíza", terá dito, de acordo com o que o DN conseguiu saber, perante o plenário de juízes.
Depois de a sua renúncia ter sido tornada pública pela SIC no próprio
dia em que foi apresentada, surgiram nos media várias versões sobre os
motivos, nas quais avulta a imputação de que teria, num projeto de
acórdão sobre a chamada "lei dos metadados", feito referência à violência doméstica,
imputação essa que tem sido relacionada com o que é descrito como
"ativismo feminista". Teria sido então esse seu "ativismo feminista" a
motivar o desacordo dos outros juízes face ao texto por si redigido, com
a própria a recusar retirar tais considerandos do texto - o que teria mesmo motivado uma ameaça de processo disciplinar por parte do presidente do TC, Manuel da Costa Andrade.
Texto não tinha qualquer referência a violência doméstica
Ora ao DN foi garantido por fonte judicial que o projeto de
acórdão assinado por Sottomayor não fazia qualquer referência a
violência doméstica e que tudo o que se discutiu em relação ao texto
tinha exclusivamente a ver com o assunto em causa - a lei dos metadados.
Esta
lei diz respeito à autorização de acesso dos serviços de informações e
segurança a dados de tráfego de comunicações, como a lista de chamadas e
mensagens de texto (hora, destinatários, duração, assim como
localização das chamadas, mas não conteúdo), fora do âmbito de processo
criminal e passando por uma autorização "rápida" - num máximo de 72
horas -- concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, de suspeitos de
terrorismo e outros crimes que se considere porem em risco a segurança
do Estado.
O pedido de fiscalização da constitucionalidade da lei
aprovada em 2017 -- e já considerada inconstitucional, por violar o
artigo 34.º da Constituição, que garante a "inviolabilidade do domicílio
e da correspondência" ("É proibida toda a ingerência das autoridades
públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de
comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo
criminal"), em parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados -- foi
assinado pelo BE, PCP e PEV.
O TC, recorde-se, já se pronunciara, em 2015, e precisamente por a
autorização não ocorrer em sede de processo criminal, pela
inconstitucionalidade de lei semelhante (mas onde não se prescrevia a
autorização obrigatória do Supremo). Desta vez o plenário do TC
dividiu-se mas os conselheiros a favor da inconstitucionalidade
venceram, tendo Sottomayor, que fazia parte desse grupo, sido escolhida
para redigir -- o que implica fundamentar --, o projeto de acórdão em
causa.
Uma das versões que correu sobre o diferendo entre a juíza e os colegas foi relatada pelo
Expresso
e coincide com o confirmado ao DN: a juíza defenderia que o seu
texto acolhia o que fora discutido e votado em plenário, e não aceitava
alterações que lhe haviam sido comunicadas fora do plenário.
Uma posição que o constitucionalista e ex deputado do PSD Jorge Bacelar Gouveia apoiou em texto de opinião no Público
no domingo, explicando como entende o funcionamento e tomada de decisão
no âmbito daquele órgão: "As decisões do Tribunal Constitucional têm
duas partes fundamentais: (i) a parte da decisão, na qual se decide se
há ou não inconstitucionalidades (e ilegalidades, se for o caso); e (ii)
a parte da fundamentação (não contando ainda com o chamado "relatório",
uma primeiríssima parte descritiva sobre a sucessão de factos que
antecedem a intervenção processual do TC). Como se trata de um órgão
colegial, a deliberação é feita pela junção dos votos individuais dos
seus 13 juízes nessas duas dimensões, devendo a fundamentação a escolher
adequar-se à decisão tomada (por maioria ou por unanimidade)."
E
prossegue a explicação: "Neste caminho, há alguém escolhido para
elaborar um projeto de texto do acórdão, que tem uma "proposta de
decisão e de fundamentação". Toda a liberdade tem de existir tanto na
decisão como a fundamentação. É óbvio que só o próprio juiz
escolhido pode escrever o texto do acórdão, que envolve um discurso
jurídico de elevada complexidade, ainda que o coloque à consideração dos
colegas, havendo muitos casos em que dessa discussão nasce um texto
final aprimorado, mais completo e profundo."
Tribunal Constitucional viola princípio constitucional?
Mas, frisa, "o "dono do texto do acórdão" é sempre o seu
relator, que tem o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu
discurso escrito, o que nada tem de autoritário. É por isso que falar em
processo disciplinar contra um juiz relator que, considerando a
essencialidade de frases ou ideias para o texto que escreve, não aceita a
imposição de frases ou palavras de outrem é esdrúxulo e indigno da
independência dos juízes: a solução é a do voto contra a fundamentação,
não decerto a de encontrar no facto uma infração disciplinar, com uma
perspectiva visivelmente censória." No limite, escreve Bacelar
Gouveia, pode "haver uma maioria a favor da decisão proposta no texto de
um acórdão, e uma maioria contra a fundamentação que no mesmo reside.
No limite mesmo, pode haver mesmo a mudança do relator."
Seria
essa a solução que este constitucionalista preconizaria para tal
discordância; perante o que é relatado, porém, conclui estar a pôr-se em
causa o princípio constitucional da independência dos juízes, que frisa
ter de ser também observada "intrajudicialmente": "[Essa independência] não é apenas ad extra, perante os outros poderes, públicos ou privados. Ela é também uma independência ad intra:
vertical, com os juízes e tribunais superiores; e horizontal, no
diálogo com os juízes colegas de um órgão colegial, sendo o caso. (...)
Não deixa de ser confrangedor o ponto a que se chegou na redução da
independência dos juízes, a ser verdadeira aquela notícia, pelos vistos
já não podendo um juiz escolher as palavras de um texto que se apresenta
da sua autoria, gravidade extrema por aqui tratar-se do Tribunal
Constitucional."
O DN procurou ouvir sobre tudo isto o
presidente do Tribunal Constitucional, Manuel da Costa Andrade,
pedindo-lhe, por SMS, que confirmasse ou infirmasse o que tem sido
noticiado sobre a saída de Clara Sottomayor daquele órgão, nomeadamente
se é verdade que ameaçou a magistrada com um processo disciplinar e,
caso afirmativo, com que fundamento; se um dos motivos da discordância
quanto à fundamentação do projeto de acórdão da relatora teve a ver,
como tem sido repetido, com base em "fontes judiciais" que remetem para o
tribunal a que preside, com a existência, no texto, a menção ou menções
a violência doméstica; como reage ao facto de ser imputada ao TC, no
citado texto de opinião de Bacelar Gouveia, a violação do princípio
constitucional da independência dos juízes, e se não considera que
perante uma suspeita/acusação tão grave o TC e o seu presidente têm o
dever de esclarecer publicamente e de viva voz o que sucedeu. Até ao início da noite desta terça-feira o presidente do TC não tinha respondido nem atendido as chamadas do DN.
* A ferro e fogo. Honra pessoal é indepedência de carácter.
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