Totalitarismo inverso
Um pluralismo a sério não é uma concessão ao ponto de vista dos outros, mas uma cultura consequente cujo significado é estarmos realmente com outros. Os outros não são uma contrariedade nas nossas vidas, mas o que lhes confere boa parte do gozo e do sentido de valer a pena vivê-las.
Em política não há uma verdade. As opiniões dividem-se porque uns
podem estar a pensar mal, ou a precipitar-se, mas é sobretudo por outra
razão que se dividem. Porque não há uma ordem de valores mais verdadeira
do que outra. Se uns apreciam mais a liberdade individual, se outros
mais o sentido de comunidade, e outros ainda o papel regulador do
Estado, não é porque uns estejam errados, ou mais errados do que outros,
mas porque têm visões de mundo e escalas de valores diferentes.
Cada
visão de mundo e cada escala de valores é também resultado da
experiência particular passada de quem a defende, da história da sua
comunidade, de uma cultura e de uma biografia. Isto não só é
inescapável, como é bom. As pessoas também são amáveis ou detestáveis
pelas visões de mundo e escalas de valores que as individualizam, até à
singularidade. O pluralismo, cultural, moral, religioso, estético, etc.,
é só o passo intermédio de uma multidão de maneiras de dar sentido ao
mundo.
Todas esta visões de mundo (as famosas Weltanshauung)
são igualmente válidas na condição de cada uma aceitar a validade das
restantes. A partir dessa igual validade, debate-se politicamente,
fazem-se acordos, ou não, e votam-se preferências sobre como organizar a
sociedade. Entre essas preferências, nos regimes políticos que assentam
no pluralismo, procura-se garantir a mais ampla convivência de uma
multidão de perspectivas. Um pluralismo a sério não é uma concessão ao
ponto de vista dos outros, mas uma cultura consequente cujo significado é
estarmos realmente com outros. Os outros não são uma contrariedade nas
nossas vidas, mas o que lhes confere boa parte do gozo e do sentido de
valer a pena vivê-las. Se houvesse verdades em política, a ideia de
democracia não faria sentido. Nem sequer a de convívio.
Mas, o que
se diz da política e do pluralismo não é extensível à ciência. Para a
ciência há verdades, mesmo sabendo que nunca sabemos se estamos na posse
da verdade. Quando os grandes epistemólogos e filósofos das ciências do
século XX preferiram que se falasse apenas em conhecimento conjectural,
provisório, teorias, hipóteses, afastando a ideia de que se pudessem
verificar e provar verdades científicas, não estavam, com isso, a dizer
que tudo é valido em ciência, cada um com a sua verdade, a sua opinião
científica — como com as opiniões de cada um sobre valores, sobre o que é
bom e o que é mau, o que é belo, o que é a felicidade.
Falar de
opinião em política e de opinião em ciência é tão diferente como os
falsos amigos que abundam entre línguas diversas, às vezes até na mesma
língua usada por populações diferentes. É grande a tentação de confundir
os dois planos, apesar de perigosa. Os projectos totalitários sempre
ansiaram por substituir opiniões plurais — que por princípio não são
verdadeiras nem falsas — por opiniões científicas — que, pelo contrário,
se presumem verdadeiras ou pelo menos se presumem ser acerca de uma
verdade.
Não faltaram tentativas históricas, à medida que o século
XIX se aproximava do fim e começava o seguinte, de provar
cientificamente, por exemplo, a superioridade de uns e a inferioridade
de outros. As suas teses não eram verdadeiras nem falsas, eram
simplesmente erradas. Eram pseudociência.
Ora, o surpreendente é
vermos hoje despontar por toda a parte uma tendência simétrica, que
acrescenta um novo sentido à ideia de totalitarismo inverso (“inverted
totalitarianism”) defendida num livro de 2003 por Sheldon S. Wolin. Em
vez dos usos pseudocientíficos da ciência a mandar calar diferenças de
opinião como se fossem falsas — logo, não um direito —, cresce pelo lado
oposto uma reivindicação de que em ciência toda a opinião é um direito e
que quem não se conforma a isto é um censor, provavelmente marxista
cultural, feminista, ou activista da ideologia de género.
O
cientista, o investigador, o professor universitário ficam incapacitados
de exercer qualquer autoridade, por mais argumentada e cientificamente
defendida que esteja, diante de qualquer outro ponto de vista. E quando
se trata do ponto de vista exactamente contrário, até parece que se
ofendem liberdades fundamentais se não lhe é concedido a priori o mesmo direito à credibilidade.
É
a credibilidade da própria ciência que se arruína cada vez que no
conselho científico de uma qualquer faculdade se aprova a realização de
encontros científicos de astrólogos, cartomantes, mestres espirituais de
uma qualquer terapia obscura, ou quando ter algo a contestar a opinião
científica é franquia suficiente para escroques.
Pior é quando
deixa de ser preservada a diferença entre conhecimento e crença por medo
do rótulo “ditadura do politicamente correcto” e da acusação de
censura. Se abordagens pseudocientíficas na política serviram no passado
justificações totalitárias, é preciso ver que as crescentes abordagens
pseudopolíticas na ciência são igualmente dadas ao totalitarismo.
E que
tudo isto tem que ver como nos relacionamos com a verdade: ou a
imposição de uma verdade no domínio da convivência política, onde não há
realmente verdades, ou a anulação do valor da verdade no domínio do
conhecimento, onde um referencial de verdade é imprescindível. Por isso,
reduzir a política a ciência, como se procurou no passado, ou reduzir a
ciência a política, como se procura agora, acaba com ambas.
A
libertação do politicamente incorrecto da suposta ditadura do
politicamente correcto e da não menos suposta conspiração do marxismo
cultural em que todos andaríamos oprimidos, não é mais do que um
projecto político que visa pôr no zero todo o conhecimento das ciências
sociais e humanas, tomá-lo a todo como ideologia, igualmente ideologia,
tão pouco verdadeiro ou tão pouco falso como as concepções de mundo e
valores, para assim garantir que nada nele condicione ou faça oposição à
escolha que prevaleça politicamente na sociedade.
A pós-verdade é
apenas uma consequência lógica deste estado de coisas. A reivindicação é
mesmo a de que não há verdade na ciência, não mais do que na política,
de que não há menos “direito” ao pluralismo em ciência do que na
política.
Este “descondicionamento” atinge as ciências sociais e
humanas, onde o objecto de estudo não são correlações entre partículas,
mas configurações sociais, representações culturais, modos de estar.
Mas
atinge também toda a ciência, caída na suspeita de que os estudos são
feitos à medida, de que é fácil publicar embustes, de que a ausência de
prova científica significa que a opinião científica não tem mais valor
que qualquer outra opinião. E é assim que alterações climáticas,
políticas públicas de saúde e educação, para dar apenas alguns exemplos,
se vêem destroçadas e dispensadas, por sólidas que fossem, de quaisquer
bases científicas.
Daqui à constituição da universidade e do
cientista, social ou outro, como potenciais inimigos políticos é um
pequeno passo. Autoridade intelectual torna-se autoritarismo, opressão
da liberdade de expressão, quase um crime.
E o passo seguinte é um
de dois que cumpre à universidade e ao cientista: ou aceitam estar ao
serviço do regime ou não têm lugar no regime. Vemos no Brasil colegas a
ponderarem seriamente o exílio enquanto Jair Bolsonaro, em visita aos
Estados Unidos de Trump, se congratula por ambos os presidentes estarem
lado a lado no respeito pelos estilos de vida da família tradicional, o
respeito por Deus, contra a ideologia de género, o politicamente
correcto e as “fake news”. Mas vemos também um pouco por toda a parte a
acusação de que a universidade está colonizada por marxismo cultural,
uma acusação vaga que pode ser atirada a qualquer um.
Precisamente por
não se saber bem o que isso é, entra na lógica da caça às bruxas.
E por cada falsidade de um Bolsonaro há quem escreva livros muito
populares a dizer mais ou menos o mesmo. Ou é a celebridade Jordan
Peterson a denunciar que as universidades estão cheias de radicais de
esquerda, ou é, por cá, um José Rodrigues dos Santos a dizer que o
fascismo tem origem no marxismo. A técnica é baralhar e tornar a dar,
para levar ao “zero” qualquer opinião científica e de novo tudo valer.
Não deixa de ser irónico serem também universitários, como estes dois, a
jogarem este jogo. No zero não há diferenças de conhecimento, e estas
passam a poder ser alegremente ignoradas num qualquer mural, hashtag, trend, de uma qualquer rede social.
Entretanto,
na economia do conhecimento, e dos bens imateriais, a universidade
proletariza-se, torna-se ela mesma uma instalação fabril regulada por
metas de produtividade, com vínculos laborais cada vez mais precários,
num quadro de hierarquias tão vincadas que só se comparam com
estruturas militares.
Nestas condições, transformadas em apenas
mais um sector de actividade económica, as universidades dificilmente
poderão honrar a capacidade, que tiveram no passado, de valer como
consciência crítica dos regimes em que se encontram. O maior equívoco da
tão apregoada autonomia universitária está no fracasso crescente da
autonomia intelectual, quando submetida a constrangimentos como
estes. Por alguma razão os principais adversários de Bolsonaro não são
fomentadores de violência e criminalidade, mas professores e activistas.
O inimigo é a universidade.
Resta resistir. Preservar o direito
de distinguir entre crença e conhecimento, entre o que é opinião
política, moral, estética sobre como o mundo deve ser, e o que é opinião
científica sobre como o mundo é, entre pluralismo de realidades e
pluralidade de perspectivas sobre a realidade.
É claro que há
pluralidade de opiniões científicas. Aliás, a controvérsia é um
ingrediente crucial na ciência. Mas só tem valor porque é controvérsia
acerca de uma mesma realidade de que se procura apurar um aspecto.
Fala-se de opinião científica no sentido de que é falível, apenas uma
aproximação, podendo confrontar-se com ela outras opiniões científicas.
Mas a sua confrontação aberta nada tem que ver com a do debate político.
Ambas são discussões públicas, e por isso ambas são desejavelmente
baseadas em razões, mas pelo menos duas características distinguem-nas.
Primeiro,
as razões no debate político podem assentar em motivos inescrutináveis,
as razões em ciência não podem. Em política pode-se dar por razão que
“é minha convicção” e há que respeitar, em ciência só se respeitam as
razões da convicção, e aquelas são sempre públicas, sustentáveis
independentemente de quem as sustenta.
Segundo, enquanto o debate
político é feito com vista a escolhas colectivas que formam e
transformam a realidade humana, o debate científico tem em vista o
esclarecimento de um aspecto da realidade. Em ciência, não se debate
entre realidades a escolher, mas para se conhecer realidades. Em
política, debate-se para escolher, ainda que debater informadamente peça
a intervenção da ciência, mas apenas isso. São, pois, duas atitudes
muito diferentes. Colapsar uma na outra, não importa por que direcção, é
caminho certo para novas servidões.
Filósofo, Universidade da Beira Interior
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