13/04/2019

ANDRÉ BARATA







Totalitarismo inverso


Um pluralismo a sério não é uma concessão ao ponto de vista dos outros, mas uma cultura consequente cujo significado é estarmos realmente com outros. Os outros não são uma contrariedade nas nossas vidas, mas o que lhes confere boa parte do gozo e do sentido de valer a pena vivê-las.


Em política não há uma verdade. As opiniões dividem-se porque uns podem estar a pensar mal, ou a precipitar-se, mas é sobretudo por outra razão que se dividem. Porque não há uma ordem de valores mais verdadeira do que outra. Se uns apreciam mais a liberdade individual, se outros mais o sentido de comunidade, e outros ainda o papel regulador do Estado, não é porque uns estejam errados, ou mais errados do que outros, mas porque têm visões de mundo e escalas de valores diferentes.


Cada visão de mundo e cada escala de valores é também resultado da experiência particular passada de quem a defende, da história da sua comunidade, de uma cultura e de uma biografia. Isto não só é inescapável, como é bom. As pessoas também são amáveis ou detestáveis pelas visões de mundo e escalas de valores que as individualizam, até à singularidade. O pluralismo, cultural, moral, religioso, estético, etc., é só o passo intermédio de uma multidão de maneiras de dar sentido ao mundo.


Todas esta visões de mundo (as famosas Weltanshauung)  são igualmente válidas na condição de cada uma aceitar a validade das restantes. A partir dessa igual validade, debate-se politicamente, fazem-se acordos, ou não, e votam-se preferências sobre como organizar a sociedade. Entre essas preferências, nos regimes políticos que assentam no pluralismo, procura-se garantir a mais ampla convivência de uma multidão de perspectivas. Um pluralismo a sério não é uma concessão ao ponto de vista dos outros, mas uma cultura consequente cujo significado é estarmos realmente com outros. Os outros não são uma contrariedade nas nossas vidas, mas o que lhes confere boa parte do gozo e do sentido de valer a pena vivê-las. Se houvesse verdades em política, a ideia de democracia não faria sentido. Nem sequer a de convívio.


Mas, o que se diz da política e do pluralismo não é extensível à ciência. Para a ciência há verdades, mesmo sabendo que nunca sabemos se estamos na posse da verdade. Quando os grandes epistemólogos e filósofos das ciências do século XX preferiram que se falasse apenas em conhecimento conjectural, provisório, teorias, hipóteses, afastando a ideia de que se pudessem verificar e provar verdades científicas, não estavam, com isso, a dizer que tudo é valido em ciência, cada um com a sua verdade, a sua opinião científica — como com as opiniões de cada um sobre valores, sobre o que é bom e o que é mau, o que é belo, o que é a felicidade.


Falar de opinião em política e de opinião em ciência é tão diferente como os falsos amigos que abundam entre línguas diversas, às vezes até na mesma língua usada por populações diferentes. É grande a tentação de confundir os dois planos, apesar de perigosa. Os projectos totalitários sempre ansiaram por substituir opiniões plurais — que por princípio não são verdadeiras nem falsas — por opiniões científicas — que, pelo contrário, se presumem verdadeiras ou pelo menos se presumem ser acerca de uma verdade.


Não faltaram tentativas históricas, à medida que o século XIX se aproximava do fim e começava o seguinte, de provar cientificamente, por exemplo, a superioridade de uns e a inferioridade de outros. As suas teses não eram verdadeiras nem falsas, eram simplesmente erradas. Eram pseudociência.


Ora, o surpreendente é vermos hoje despontar por toda a parte uma tendência simétrica, que acrescenta um novo sentido à ideia de totalitarismo inverso (“inverted totalitarianism”) defendida num livro de 2003 por Sheldon S. Wolin. Em vez dos usos pseudocientíficos da ciência a mandar calar diferenças de opinião como se fossem falsas — logo, não um direito —, cresce pelo lado oposto uma reivindicação de que em ciência toda a opinião é um direito e que quem não se conforma a isto é um censor, provavelmente marxista cultural, feminista, ou activista da ideologia de género.


O cientista, o investigador, o professor universitário ficam incapacitados de exercer qualquer autoridade, por mais argumentada e cientificamente defendida que esteja, diante de qualquer outro ponto de vista. E quando se trata do ponto de vista exactamente contrário, até parece que se ofendem liberdades fundamentais se não lhe é concedido a priori o mesmo direito à credibilidade.


É a credibilidade da própria ciência que se arruína cada vez que no conselho científico de uma qualquer faculdade se aprova a realização de encontros científicos de astrólogos, cartomantes, mestres espirituais de uma qualquer terapia obscura, ou quando ter algo a contestar a opinião científica é franquia suficiente para escroques.


Pior é quando deixa de ser preservada a diferença entre conhecimento e crença por medo do rótulo “ditadura do politicamente correcto” e da acusação de censura. Se abordagens pseudocientíficas na política serviram no passado justificações totalitárias, é preciso ver que as crescentes abordagens pseudopolíticas na ciência são igualmente dadas ao totalitarismo. 
E que tudo isto tem que ver como nos relacionamos com a verdade: ou a imposição de uma verdade no domínio da convivência política, onde não há realmente verdades, ou a anulação do valor da verdade no domínio do conhecimento, onde um referencial de verdade é imprescindível. Por isso, reduzir a política a ciência, como se procurou no passado, ou reduzir a ciência a política, como se procura agora, acaba com ambas.


A libertação do politicamente incorrecto da suposta ditadura do politicamente correcto e da não menos suposta conspiração do marxismo cultural em que todos andaríamos oprimidos, não é mais do que um projecto político que visa pôr no zero todo o conhecimento das ciências sociais e humanas, tomá-lo a todo como ideologia, igualmente ideologia, tão pouco verdadeiro ou tão pouco falso como as concepções de mundo e valores, para assim garantir que nada nele condicione ou faça oposição à escolha que prevaleça politicamente na sociedade.


A pós-verdade é apenas uma consequência lógica deste estado de coisas. A reivindicação é mesmo a de que não há verdade na ciência, não mais do que na política, de que não há menos “direito” ao pluralismo em ciência do que na política.


Este “descondicionamento” atinge as ciências sociais e humanas, onde o objecto de estudo não são correlações entre partículas, mas configurações sociais, representações culturais, modos de estar.

Mas atinge também toda a ciência, caída na suspeita de que os estudos são feitos à medida, de que é fácil publicar embustes, de que a ausência de prova científica significa que a opinião científica não tem mais valor que qualquer outra opinião. E é assim que alterações climáticas, políticas públicas de saúde e educação, para dar apenas alguns exemplos, se vêem destroçadas e dispensadas, por sólidas que fossem, de quaisquer bases científicas.


Daqui à constituição da universidade e do cientista, social ou outro, como potenciais inimigos políticos é um pequeno passo. Autoridade intelectual torna-se autoritarismo, opressão da liberdade de expressão, quase um crime.


E o passo seguinte é um de dois que cumpre à universidade e ao cientista: ou aceitam estar ao serviço do regime ou não têm lugar no regime. Vemos no Brasil colegas a ponderarem seriamente o exílio enquanto Jair Bolsonaro, em visita aos Estados Unidos de Trump, se congratula por ambos os presidentes estarem lado a lado no respeito pelos estilos de vida da família tradicional, o respeito por Deus, contra a ideologia de género, o politicamente correcto e as “fake news”. Mas vemos também um pouco por toda a parte a acusação de que a universidade está colonizada por marxismo cultural, uma acusação vaga que pode ser atirada a qualquer um.
Precisamente por não se saber bem o que isso é, entra na lógica da caça às bruxas.


E por cada falsidade de um Bolsonaro há quem escreva livros muito populares a dizer mais ou menos o mesmo. Ou é a celebridade Jordan Peterson a denunciar que as universidades estão cheias de radicais de esquerda, ou é, por cá, um José Rodrigues dos Santos a dizer que o fascismo tem origem no marxismo. A técnica é baralhar e tornar a dar, para levar ao “zero” qualquer opinião científica e de novo tudo valer. Não deixa de ser irónico serem também universitários, como estes dois, a jogarem este jogo. No zero não há diferenças de conhecimento, e estas passam a poder ser alegremente ignoradas num qualquer mural, hashtag, trend, de uma qualquer rede social.


Entretanto, na economia do conhecimento, e dos bens imateriais, a universidade proletariza-se, torna-se ela mesma uma instalação fabril regulada por metas de produtividade, com vínculos laborais cada vez mais precários, num quadro de hierarquias tão vincadas que só  se comparam com estruturas militares.


Nestas condições, transformadas em apenas mais um sector de actividade económica, as universidades dificilmente poderão honrar a capacidade, que tiveram no passado, de valer como consciência crítica dos regimes em que se encontram. O maior equívoco da tão apregoada autonomia universitária está no fracasso crescente da autonomia intelectual, quando submetida a constrangimentos como estes. Por alguma razão os principais adversários de Bolsonaro não são fomentadores de violência e criminalidade, mas professores e activistas. O inimigo é a universidade.

Resta resistir. Preservar o direito de distinguir entre crença e conhecimento, entre o que é opinião política, moral, estética sobre como o mundo deve ser, e o que é opinião científica sobre como o mundo é, entre pluralismo de realidades e pluralidade de perspectivas sobre a realidade.


É claro que há pluralidade de opiniões científicas. Aliás, a controvérsia é um ingrediente crucial na ciência. Mas só tem valor porque é controvérsia acerca de uma mesma realidade de que se procura apurar um aspecto. Fala-se de opinião científica no sentido de que é falível, apenas uma aproximação, podendo confrontar-se com ela outras opiniões científicas. Mas a sua confrontação aberta nada tem que ver com a do debate político. Ambas são discussões públicas, e por isso ambas são desejavelmente baseadas em razões, mas pelo menos duas características distinguem-nas.


Primeiro, as razões no debate político podem assentar em motivos inescrutináveis, as razões em ciência não podem. Em política pode-se dar por razão que “é minha convicção” e há que respeitar, em ciência só se respeitam as razões da convicção, e aquelas são sempre públicas, sustentáveis independentemente de quem as sustenta.


Segundo, enquanto o debate político é feito com vista a escolhas colectivas que formam e transformam a realidade humana, o debate científico tem em vista o esclarecimento de um aspecto da realidade. Em ciência, não se debate entre realidades a escolher, mas para se conhecer realidades. Em política, debate-se para escolher, ainda que debater informadamente peça a intervenção da ciência, mas apenas isso. São, pois, duas atitudes muito diferentes. Colapsar uma na outra, não importa por que direcção, é caminho certo para novas servidões.

Filósofo, Universidade da Beira Interior




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