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IN "VISÃO"
18/10/18
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A máquina de fazer fascistas
Não é, pois, de estranhar que, com este padrão de funcionamento, o YouTube seja o ponto de partida para o recrutamento da extrema-direita um pouco por todo o lado
Tomemos um exemplo inocente. Vamos ao
YouTube procurar algo que a minha filha mais pequena gosta de ver: a
princesa Elsa. Numa pesquisa, as primeiras opções apresentadas são de
facto a princesa do gelo, ambiente doce e delicado. Ao fim de alguns
clicks, começam a surgir outras coisas, digamos, mais radicais: Elsas
vilãs, Elsas doentes com altos na cabeça e cabelo a cair, Elsas feias,
porcas e más. Dirão que a minha filha de 4 anos tem preferências pelo
“dark side” e navega sempre desta forma, motivo pelo qual o algoritmo
lhe apresenta estas coisas mais obscuras. Gosto de acreditar que não. O
algoritmo do YouTube tende a radicalizar as opções oferecidas,
explorando o que é da natureza humana: se nos colocarem opções mais
sombrias à frente, temos tendência para ir lá espreitar, da mesma forma
como gostamos de olhar para um acidente.
Não é, pois,
de estranhar que, com este padrão de funcionamento, o YouTube seja o
ponto de partida para o recrutamento da extrema-direita um pouco por
todo o lado. Vários estudos comprovam que a rede social, também em
matéria política, recomenda e dissemina vídeos cada vez mais extremos,
cada vez mais agressivos e “radicalizantes”, empurrando para um canto
perigoso pessoas que começaram por entrar num território mais neutro. A
internet é hoje o grande recrutador de fascistas, como é o grande
recrutador de radicais islâmicos. No ano passado estive a fazer a
cobertura das eleições alemãs junto de um grupo militante da AfD, o
partido de extrema-direita que conquistou então 13% dos votos e entrada
no Parlamento alemão e que voltou a ter um resultado histórico este fim
de semana na Baviera, e nunca mais esqueci a frase que ouvi: “Sem a
internet isto nunca tinha sido possível.” Os dois elementos da AfD
felicitavam-se eufóricos enquanto brindavam a grande conquista de Berlim
com uma caneca de cerveja. De facto, não tinha: foi na net que
engrossaram as fileiras dos alemães temerários dos imigrantes e
refugiados, como foi no Twitter e no Facebook que Trump e Bolsonaro
recrutaram uma grossa fatia de cidadãos dececionados
Madeleine Albright, no seu último e imperdível livro Fascismo,
toca no tema logo nas primeiras páginas. Sublinha que a tecnologia
tornou possível que organizações extremistas criassem câmaras de
ressonância de apoio a várias teorias da conspiração, a narrativas
falsas e a pontos de vista ignorantes sobre religião e raça. E, como bem
sabemos, repetida as vezes suficientes, qualquer declaração, história
ou calúnia pode começar a parecer plausível. Como a História mostrou, o
fascismo tende a impor-se devagar e passo a passo. Há um célebre
testemunho de um alemão, que viveu a ascensão do Terceiro Reich, que
Albright recuperou e diz que cada passo foi tão pequeno que não se via
“o processo a desenvolver-se de dia para dia, tal como o agricultor não
vê o milho a crescer no campo”. Depois, já era tarde demais. O fardo da
autoilusão para este alemão só desmoronou quando ouviu o seu filho, que
era pouco mais do que um bebé, a dizer “porco judeu”: “Apercebemo-nos de
que tudo, tudo, mudou, e mudou completamente debaixo do nosso nariz.”
Hoje tudo muda, devagarinho, à frente do nosso nariz, a olhar para um
ecrã. Espero bem não ver a minha filha um dia destes a dizer
“imigrantes, rua!” e outras coisas do género.
Yuval Noah Harari, um dos melhores pensadores destes tempos, escreveu nas suas 21 Lições para o Século XXI,
que a modernidade abriu um supermercado de histórias. Os movimentos
totalitaristas modernos, como o fascismo, criam histórias únicas
facilmente difundidas. Recentemente, num texto para a Atlantic, chama os
bois pelos nomes: a tecnologia favorece os tiranos. Na esteira do que
tem escrito antes, defende que a Inteligência Artificial pode apagar
muitas das vantagens práticas da democracia e acabar com os ideais da
liberdade e da igualdade.
Como sairmos daqui, eis a questão. O
desenvolvimento tecnológico não vai andar para trás nem o Homem deixar
de estar online. E a net, bem usada, pode ser um precioso instrumento de
liberdade e de conhecimento. Para não sermos vítimas do nosso próprio
desenvolvimento e inteligência, é preciso, cada vez mais, educação e
informação: educação para a tolerância e para a cidadania, informação
fidedigna e isenta. É a única forma de se combater os novos tiranos
digitais. Ou, pelo menos, tentar.
IN "VISÃO"
18/10/18
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