HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
"O corpo das mulheres
é propriedade pública"
Milhões de mulheres em todo o mundo partilharam a hashtag me too (eu também) desde que foi lançada pela atriz Alyssa Milano no Twitter, há menos de um mês. A ideia é denunciar episódios de assédio e agressão sexual de que foram vítimas, demonstrando o quão global e "normal" é o fenómeno, retirando-o da invisibilidade. "Vamos falar disto até que pare", diz Milano. Adolescentes dos 12 aos 19 aceitaram o repto e contaram aos DN as suas experiências.
"Ó boa, essas pernas, esse rabo, o que eu
te fazia. Desde os 12 anos que oiço esse tipo de comentários sobre o meu
corpo. Sempre de homens mais velhos, muito mais velhos. Até já fui
perseguida por um. E no outro dia houve um homem que me pôs a mão no
ombro para me dizer que as calças me ficavam muito bem. Penso muitas
vezes que eles devem ter filhas e netas da minha idade, não percebo."
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Joana
tem 17, está no 11º ano e vive em Vila Nova de Gaia. Faz o trajeto
casa-escola a pé. "Quando ouvi isso pela primeira vez fui falar com a
minha mãe. Ela ficou preocupada mas disse para ignorar, não dar
importância. Deu a entender que é uma coisa que acontece." Acontece à
mãe, aliás. "Ela tem 46 anos e trabalha no meio de homens, faz limpezas
numa empresa de transportes. E há homens que comentam o rabo dela,
metem-lhe a mão nas pernas. Fez queixa várias vezes mas agora tem uma
chefe mulher que é mais compreensiva e que finalmente agiu. Alguns
desses homens foram retirados do setor dela e proibidos de se aproximar
da minha mãe." Sobre se houve mais consequências para os ditos, Joana
não sabe, e se não sabe é porque provavelmente não houve. Tudo isso
fá-la concluir que "as mulheres estão muito pouco seguras. Sinto
desconforto e muito medo quando estas coisas me acontecem. Tenho medo de
sair à rua sozinha, e há coisas que não faço, por exemplo não posso
usar uma saia porque se saio de saia sou logo chateada". E como reage
quando é assediada? "Fico sem reação, nunca sei o que dizer." Perguntada
sobre o que poderá ser feito para obviar a estas situações, reflete:
"Haver alguém que abrisse os olhos das pessoas para o facto de isto não
ser coisa que se faça a alguém." Abrir os olhos como? Através da lei,
por exemplo? "Por acaso acho que já é ilegal e que posso fazer queixa,
mas não vai dar em nada. Os homens estão muito retardados no tempo,
vivem na época em que a mulher ainda era um objeto, não têm noção de que
estão a cometer um crime. Não há direito de me fazerem sentir assim
desconfortável na rua. E sucede às minhas colegas também."
Ana, 16 anos, colega de Joana, tem uma teoria sobre o porquê de isto
suceder tanto a miúdas tão novas: "Acho que os homens pensam que têm
poder sobre as raparigas. Por acharem se calhar que as raparigas mais
novas estão desprotegidas, são frágeis, presas fáceis, que não vão
reagir da "má forma" - ou seja da forma correta. Que não vão chamar a
atenção e dizer: "Conheço-o de algum lado para falar assim comigo?", que
será se calhar a forma como uma mulher de 40 anos reagirá. A maioria de
nós tem medo e não reage." Mas, pensando bem, Ana não sabe se reagir
não é pior. "Porque o que querem é atenção. Se acharem que estão a
captar a atenção vão continuar. Apesar de achar que é uma enorme falta
de respeito, quando nos acontece o melhor é ignorar. Mas não se deve
ignorar o assunto em si. Deve-se chamar a atenção para isto, clarificar
os limites. É muito importante falar-se disto e agora que existe a
perceção do que é o assédio e do quão mau isso é, podemos dar a nossa
opinião. Porque antes era um assunto tabu, não se dava tanta
importância."
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O que mudou para agora se falar do assunto e surgir uma catadupa de
denúncias a nível mundial Ana não sabe. Mas crê que algumas destas
condutas devem ter a atenção das autoridades: "Se calhar em certas
circunstâncias deve-se pedir ajuda à polícia. Se for repetido, se o
homem seguir a rapariga. E depende das coisas que se dizem, porque há
coisas irrelevantes e coisas muito ordinárias. Dar elogios do tipo "és
linda" é diferente de "tens um rabo não sei quê"." Além de que tudo isso
é, anota, um despropósito e uma falta de respeito que se denuncia logo
no tratamento por tu: "Trato os mais velhos na terceira pessoa por uma
questão de respeito e eles devem fazer o mesmo comigo. Não é por sermos
mulheres que têm de andar a assediar-nos e a mandar piropos." Ana
Leonor, da mesma turma e idade, concorda: "Não faz sentido estarem a
dirigir-se a mim de uma forma tão violenta sem me conhecerem e dizerem
coisas sobre o meu corpo, só me interpretarem pelo meu aspeto físico.
Sou uma pessoa como eles. Nem percebo qual poderá ser a lógica. Parece
ser uma coisa que fazem para satisfação própria. E acho que parte desse
prazer também passa pelo choque e desconforto que causam. Isso
agrada-lhes. Porque obviamente sabem que nós ficamos chateadas, com
medo, inseguras, perturbadas. Ou se calhar pensam só neles mesmos e na
situação que estão a criar, nem devem pensar na interação que estão a
fazer que é errada e abusadora." Daí que Ana Leonor ache que dizer "não
está correto o que estás a fazer e devias parar, não está certo fazer
isso a raparigas tão novas" seria o mais adequado. Gostava de o ter dito
a dois rapazes de 20 anos que se meteram com ela e uma amiga na semana
passada, mas ficou "sem reação". "Acho que devia ter respondido assim,
não a insultar. Seria importante motivá-los a perceber que aquilo é
errado. Mas talvez surta mais efeito se forem homens a dizer. Se formos
nós eles não dão crédito, não é?" Será? A colega Ana acha que o que
podia funcionar era "tratar do assunto como se trata do assunto das
drogas e da deep web. Assim como vão às escolas falar das
drogas ilícitas, também deviam fazer palestras a este respeito". Mas a
maioria dos assediadores são homens muito mais velhos, não é? "É. Mas
como os rapazes vão ser adultos e isto passa de pais para filhos, talvez
avisando agora sirva para alguma coisa."
"Parece que somos cãezinhos"
"Acho que os rapazes não têm noção daquilo
que nós passamos - porque com eles não acontece, é diferente. Quantas
histórias é que a gente conhece de um rapaz ir num autocarro e uma
senhora mandar-lhe uma boca ou esfregar-se nele? Nenhuma. É a
diferença." Alexandra, 15 anos, vive em Lisboa e está no 10º ano. Não
anda muito na rua sozinha, garante, porém já teve várias experiências
desagradáveis "desde os 13, 14 anos". Mas, relata, "a sério a sério foi
só uma, no fim de setembro. Ia no autocarro tranquila, na minha vida,
entrou um homem com um aspeto horrível e sentou-se à minha frente. Ficou
a olhar para mim de uma forma tal que me senti incomodada e me levantei
para me afastar. E aí ele disse, alto, que eu era muita boa e que me
comia e mais não sei o quê. E ninguém fez nada. O motorista percebeu,
havia ali montes de gente e não disseram uma palavra. Algumas pessoas
abanaram a cabeça mas ninguém me ajudou. Saí na paragem a seguir e o
homem ainda gozou: "Vais-te embora? Esta juventude agora não é como
antigamente"." Alexandra suspira, inconformada. "Já cheguei a estar com a
minha mãe na rua e fazerem-lhe isto, e a minha avó passou pelo mesmo.
Tem 62 ou 63 anos e fala muito de quando trabalhava em Lisboa e ia na
rua e era apalpada e ouvia bocas. E era o tipo de pessoa que espetava um
estalo ou mandava uma pedra. Diz-me sempre que não posso admitir, que
tenho de reagir. E a minha madrasta diz para lhes mostrar o dedo do
meio, mas tenho receio.
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São coisas que me perturbam, e vejo que todas as minhas amigas passam pelo mesmo. Elas dizem que devemos ignorar e ser superiores." Faz uma pausa, como quem contempla a dimensão do fenómeno, a sua permanência e a impotência que sente. "As mulheres são habituadas a isto: sucede, suspiram e pronto, daqui a bocado parece que está tudo bem. Mas essa atitude mantém o silêncio em relação ao assunto, mantém estes comportamentos numa esfera de normalidade." A normalidade, crê, de "se continuar a ver as mulheres como seres inferiores, frágeis: estes homens fazem estas coisas porque acham que vão criar um sentimento de medo".
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São coisas que me perturbam, e vejo que todas as minhas amigas passam pelo mesmo. Elas dizem que devemos ignorar e ser superiores." Faz uma pausa, como quem contempla a dimensão do fenómeno, a sua permanência e a impotência que sente. "As mulheres são habituadas a isto: sucede, suspiram e pronto, daqui a bocado parece que está tudo bem. Mas essa atitude mantém o silêncio em relação ao assunto, mantém estes comportamentos numa esfera de normalidade." A normalidade, crê, de "se continuar a ver as mulheres como seres inferiores, frágeis: estes homens fazem estas coisas porque acham que vão criar um sentimento de medo".
Acham e criam: "Sou insegura e
fiquei um bocado receosa, tenho evitado andar de autocarro desde então."
Custou-lhe particularmente, confessa, constatar que nenhum dos adultos
presentes, nem sequer o motorista, veio em seu auxílio. "As pessoas
deveriam ser sensibilizadas a intervir e deveria haver uma penalização
legal para estes comportamentos. É mau quando estamos sozinhas e nos
sentimos sozinhas. Pelo menos as mulheres que estavam ali deveriam ter
dito alguma coisa. Parece que ninguém tem noção de que pode estar
perante uma ilegalidade. Há uma enorme falta de consciência."
Mas como frisar a possibilidade se estar ante um comportamento ilegal se
à partida as vítimas desconsideram a possibilidade de fazer queixa? Por
exemplo Sofia Lopes, 18 anos, no 1º ano de Ciência Política e Relações
Internacionais na Universidade Nova, sabe que "há pouco tempo passou a
lei que criminaliza o piropo [refere-se ao crime de importunação sexual,
que desde 2015 inclui "propostas sexuais" - ver texto nestas páginas]".
Mas não conhece ninguém que se tenha queixado e ela própria nunca
ponderou fazê-lo. "Fiquei muito feliz com a nova lei, mas parece-me um
pouco difícil de pôr em prática. Quando isto me começou a acontecer, no
5º ou no 6º ano, quando ia sozinha para a escola, ficava tão em choque
que nem via a cara, a matrícula, só pensava em fugir. Agora já reajo,
mas a primeira ideia é defender-me, responder. Não me passa pela cabeça
anotar a matrícula ou fixar a cara da pessoa ou ir à procura de um
polícia. Além de que a maior parte dos casos parecem abordagens
inocentes. Eu sei que é assédio, mas como vou dizer à polícia que estava
a ir para casa à noite e um carro parou ao meu lado a perguntar se
estou bem e se quero boleia ou alguma coisa? Contado assim parece
inofensivo." Ri. "Por exemplo, posso falar disto aos meus amigos rapazes
vezes sem conta e desconsideram como "coisas da feminista maluca", mas a
primeira vez que veem acontecer ficam passados: "Isto é assim? Quantas
vezes ouves estas coisas? Vais responder?" Digo-lhes que é o meu
dia-a-dia e ficam de boca aberta. Não têm qualquer noção. As pessoas
precisam de sentir as coisas na pele para se importarem. Já tinha falado
com eles sobre isso e não ligavam - e depois de repente viram e
sentiram a tensão e o desconforto, e nem sequer foram bocas chocantes."
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Porque, reconhece Sofia, "é muito difícil quem nunca passou por isto,
quem não passa por isto desde criança perceber o que é. Ser-se
sexualizada à partida, antes mesmo de saber o que é a sexualidade, qual a
minha sexualidade. E sentir esta noção enraizada de que somos
inferiores, como se fôssemos cãezinhos. O tratamento por tu desde logo, a
quebrar toda a distância, a mostrar a falta de respeito."
Andar na rua é ser julgada"
Colega de Sofia na mesma faculdade, mas no
2.º ano de Sociologia, Filipa Moreira, de 19 anos, resume o sentimento:
"Não me lembro de existir sem ser assediada. E não tenho uma mulher à
minha volta que nunca o tenha sido. Parece que faz parte. O facto de eu
andar na rua não é andar na rua, é estar a ser julgada e apreciada - se
sou bonita se sou feia, etc. Faz-me confusão acharem que têm o direito
de dar opinião sem ninguém pedir. Como é possível que alguém invada
assim o meu espaço? Até criei uma forma de andar na rua sempre com cara
de chateada, é um automatismo para ver se desencorajo abordagens. Ganhei
uma postura defensiva e há coisas que não visto ou se vestir ponho
qualquer coisa por cima para tapar o rabo."
Calções,
por exemplo. "Lembro-me de ter 13 anos, ser verão e estar de calções e
uns homens terem gritado. Estava acompanhada da família e ainda me fez
mais impressão perceber que acharam aquilo normal. Até houve uma tia que
encarou como um elogio. Deixei de usar calções." Mas nem cara de má nem
evitar calções resulta. Há duas semanas, conta, estava a sair da
estação de Entrecampos e um rapaz de uns 20 e poucos anos veio contra
ela. "Fez de propósito. Revirei os olhos e continuei, nem disse nada, ia
com os headphones postos. E de repente apanhei um enorme susto
porque alguém me agarrou o braço. Gritei "foda-se". Mas não consegui
ser mais assertiva, mandá-lo embora. Ele foi atrás de mim a dizer coisas
até que desistiu." Não foi a única vez que alguém passou à abordagem
física: lembra-se de ser apalpada num festival de música e na final do
Euro 2016, no Terreiro do Paço. "Na primeira foram rapazes, na segunda
um homem muito mais velho. Das duas vezes bati-lhes. E acho que devia
ter batido muito mais. Porque é uma intrusão, uma agressão tal que nem
percebo como é possível. E começa logo quando somos crianças: na escola
primária os miúdos faziam isso, parecia um jogo. Começamos a
internalizar essa "normalidade" muito cedo. Infelizmente a sociedade
está criada assim, o corpo das mulheres é propriedade pública."
E qualquer homem, em qualquer lugar, pode
arrogar-se essa posse: "Não consigo traçar o perfil de quem faz isto."
Por exemplo o de 40 anos que anda no mesmo ginásio que ela: "Falava do
meu corpo, fazia comentários porcos, uma vez até falou de uma posição
sexual. Fiquei superenojada. Foi preciso um amigo meu ameaçá-lo para ele
parar com aquilo, estava ali no meio do ginásio a dizer aquelas coisas e
toda a gente a perceber o quão atrapalhada eu estava e ninguém dizia
nada."
Será que Filipa tem mais
histórias de assédio do que outras raparigas da sua idade ou
simplesmente tem mais consciência delas e desculpabiliza menos,
normaliza menos, das bocas de rua às vezes em que dá grandes voltas no
seu carro para fugir a situações em que outros automobilistas se metem
com ela no trânsito? Seja como for, a que considera até hoje a pior
sucedeu aos 14. "Essa afetou-me mesmo. A minha mãe é contabilista e fui
com ela a um restaurante buscar documentos. Ela ficou na esplanada a
falar com o dono e fui lá para dentro sentar-me. Um empregado começou a
falar comigo e a dizer que era muito gira. Meteu-me a mão na perna e
perguntou se queria ir com ele ao cinema da meia-noite. Disse que não
mas deu-me o número dele num papel. Era um homem da idade do meu pai,
achei aquilo horrível mas não sabia como reagir por não querer
prejudicar a minha mãe. Só lhe contei quando fomos embora, mostrei-lhe o
papel com o telefone. Ela foi lá fazer um escândalo." Cinco anos
depois, Filipa tomou uma decisão: "Ganhei a noção de que preciso mesmo
de ocupar o meu espaço. É preciso comprar a guerra contra o machismo.
Não contra os homens, mas contra o machismo. Agora respondo, olho-lhes
diretamente para a cara, peço para repetirem o que disseram. E antes
quando alguém me agarrava na rua perguntava às minhas amigas se teria o
direito de bater - e agora acho que tenho todo o direito."
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O
direito de agredir fisicamente quem agride por palavras ou impõe um
contacto físico indesejado? Não deveria não ser necessário chegar aí?
Não deveria estar antes disso o Direito, com maiúscula? Certo é que, se a
lei pune em teoria a importunação sexual, incluindo propostas sexuais e
contactos sexuais indesejados, não é assim tão evidente que o faça na
prática. Uma pesquisa por "importunação sexual" no Google devolve poucas
decisões judiciais, todas da Relação. Numa, um típico caso de assédio
no local de trabalho, um Tribunal de Instrução Criminal não pronunciou
um homem que sistematicamente se roçava nas nádegas de uma colega quando
esta estava a pôr e tirar loiça da máquina (trabalhavam num
restaurante) e lhe mexia no corpo apesar de esta protestar e lhe pedir
para não o fazer. Para o TIC, não estava preenchido o tipo criminal
porque este fala de "constranger" e considerava não ter havido
constrangimento, por o equivaler a coação. O MP recorreu e a Relação de
Évora, em acórdão
de maio de 2012, dos desembargadores Carlos Berguete Coelho e Ana
Bacelar Cruz, declarou existirem indícios suficientes de que o crime foi
praticado. Casos de assédio verbal já no âmbito da nova formulação -
desde 2015 - do crime de importunação sexual não aparecem. Existe um
prévio, no qual a Relação de Coimbra, numa decisão de 2016 de que foi
relator Jorge França, considerou que dizer em público a uma mulher
"comia-te toda, és toda boa, pagavas o que me deves" não atinge "o
patamar mínimo de dignidade ético-penal apto a fazer intervir o tipo de
crime de injúria [que era o tipo disponível à época dos factos]." O caso
fez correr muita tinta, havendo quem considerasse que se provava ser
mesmo necessário o novo tipo criminal e quem dissesse que não se estava
ainda assim perante uma proposta sexual.
O
não se ter acesso a todas as decisões dos tribunais portugueses não
ajuda a clarificar o que possa ser entendido como crime em matéria de
assédio. Mas se tomarmos como medida um acórdão de janeiro de 2016 do Tribunal da Relação de Coimbra,
nada será. Decidiu esta instância, sem lugar a recurso, que a frase "Ó
pequenina, eu quero-te foder", dirigida por um homem de 65 anos a uma
menina de 10 enquanto fazia "gestos com a língua" não constituiu crime.
Para justificar este entendimento, que fora já o do tribunal inferior,
os desembargadores Orlando Gonçalves (relator) e Inácio Monteiro
consideram que sendo o crime de que o arguido fora acusado pelo MP "o de
abuso sexual de menor" (artigo 171.º do Código Penal), no seu número 3,
alínea b, e definindo-se este como o comportamento de quem atua "sobre
menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto
pornográficos", este deveria ser absolvido. Porquê? Por não ter havido
"conversa", ou seja, só o arguido ter falado. Lê-se no acórdão que mesmo
admitindo que "a expressão dirigida pelo arguido à menor tem, sem
dúvidas, intensidade pesada e baixamente sexual", não se pode considerar
que o crime tenha ocorrido porque quando ouviu aquelas palavras a
menina fugiu para o pé da mãe: "A expressão não se mostra integrada numa
conversa verbal mantida com a ofendida, ou mesmo com terceiro na
presença desta (...). A menor não quis estabelecer qualquer comunicação
com o arguido; saiu de imediato do local onde o arguido lhe dirigiu
aquelas palavras, correndo em direção à mãe a relatar-lhe o sucedido.
(...) Cremos que será algo temerário, por exceder a correspondência que
um homem médio terá do termo "conversa", fazer uma interpretação
extensiva deste substantivo de modo a incluir-se nele o significado de
dirigir palavras a outra pessoa, sem que esta, por sua vez, estabeleça
qualquer comunicação com o agente emissor."
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Temerário, qualificar como crime dizer a
uma criança de 10 anos "quero-te foder". Iara, 13 anos, não sabe disto,
mas acha que "infelizmente não é proibido" aquilo que considera ter a
sorte de ainda não lhe ter sucedido e que várias colegas lhe relataram:
"Passam na rua carrinhas com homens lá dentro e comentam, falam sobre o
corpo delas. Algumas têm medo de andar na rua por causa disso." Acha que
lhe vai acontecer mais tarde ou mais cedo, numa inevitabilidade que não
vê como impedir nem a como reagir. "Não tenho medo, mas é uma espécie
de não querer que me aconteça porque deve ser um bocado desagradável.
Mas vou de certeza continuar a andar e não dizer nada."
Maria
Caldas, um ano mais nova, também lisboeta, tem a convicção contrária.
"Acho que se me acontecer terei uma reação extrema. Porque exijo
respeito, por amor da santa." E garante: "Se forem rapazes da minha
idade ainda posso ter alguma tolerância, falar com eles. E uma coisa são
elogios, tipo "és gira", que não são nada de mais. Mas se for "tens as
mamas boas", aí é logo ao estalo." E não tens medo? "Se tenho medo? Isso
temos todas. Mas isto tem de acabar."
* Muito obrigado a Fernanda Câncio por este importante trabalho.
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