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A condição humana na sua TV
As nossas noções de
bem e mal, outrora presas a uma linearização excessiva, são atualizadas à
medida que vamos ficando cada vez menos ingénuos e chocados com o
enredo que nos é apresentado.
Poucas coisas entraram de forma tão fulminante na cultura popular como A Guerra dos Tronos. À semelhança de fenómenos como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter, a saga de George R. R. Martin conseguiu consolidar a sua popularidade e entranhar-se no nosso vocabulário quotidiano.
O termo “Guerra dos Tronos” tornou-se sinónimo de intriga e
manipulação política. Os protagonistas têm hipóteses reduzidas de
sobreviver ao jogo de disputas pelo poder, e grande parte do enredo
consiste em mover as peças do xadrez bélico e político de forma
inteligente e implacável.
Habituados a histórias tradicionais, em que o herói triunfa no
fim da sua jornada ou se sacrifica valorosamente pelo mundo, os leitores
e espectadores foram apanhados de surpresa pela disponibilidade do
autor em matar os seus protagonistas da forma mais inglória ou injusta
possível. Ao longo das várias temporadas (e livros), assistimos a
decapitações, envenenamentos, casamentos vermelhos, massacres, torturas e
um sem fim de guerras em contexto medieval, com a introdução gradual de
elementos de fantasia, tais como dragões e mortos-vivos.
Mas o lado fantástico de A Guerra dos Tronos está longe de
ser a sua maior força. Esta reside no lado humano e no modo como as
personagens revelam os seus conflitos interiores, que tanto tem cativado
o mundo inteiro. Através de diálogos inesperadamente profundos,
descobrimos que não há uma verdadeira separação entre o bem e o mal. Um
regicida pode demonstrar sentido de honra, assim como um cavaleiro nobre
pode agir com a maior cobardia. Cada indivíduo faz as suas escolhas,
que poderão ser ditadas pela ganância, honra, ambição, amor.
Sendo de inspiração medievalista, a série não deixa de criar um
retrato convencional das relações entre casas nobres e plebeus. Mas a
dinâmica tem vindo progressivamente a mudar em relação ao papel dos
géneros. E se é verdade que as mulheres sofrem sempre às mãos dos
homens, agora são elas quem revela maior astúcia, perspicácia e
pragmatismo.
No fundo, resume-se à subversão das expectativas. A estratégia
política de uma brutalidade ímpar desperta interesse, mas o facto de a
série não cumprir as vontades e os desejos do público é parte do que a
torna tão especial. No entanto, o mundo de Westeros, o continente
fictício onde decorre grande parte da narrativa, vai buscar inspiração
às guerras que dominaram a Europa durante séculos. Não há nenhum ato de
crueldade que não tenha sido baseado em factos verídicos. As nossas
noções de bem e mal, outrora presas a uma linearização excessiva, são
atualizadas à medida que vamos ficando cada vez menos ingénuos e
chocados com o enredo que nos é apresentado. Passámos a assistir pela
televisão ao real retrato da condição humana e tem sido, sem dúvida, uma
lição incrível.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
21/07/17
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