Linchamentos gentis
e outras desventuras
Não tinha qualquer intenção de escrever
sobre Gentil Martins; prefiro não perder tempo com fanáticos. E assim
seria, se não me tivesse dado conta de que as reações aos
pronunciamentos do ex bastonário numa entrevista ao Expresso incluem
colunas de opinião em que quem os criticou é apelidado de "Gestapo",
"Stasi", e "turba linchadora", ou o atual bastonário não tivesse dito
coisas que não podem passar em branco.
Chamar
Gestapo a alguém por se indignar com o facto de GM ter chamado anormais
e doentes aos homossexuais é uma justa homenagem ao fanatismo do
cirurgião pediatra: só a alguém igualmente incapaz de pensar fora da
fobia ocorreria usar o nome da polícia nazi, associada à morte de
milhares de homossexuais, para denominar os que se indignam por haver
quem use em relação a este grupo o mesmo tipo de terminologia que os
nazis usaram. E quem fala em "linchamento" de GM a propósito do que se
considera ser a reação furiosa "das redes sociais" tem o mau gosto de
fazer de conta que não sabe que linchamento, na acepção fatal do termo, é
o que sucedeu a miríades de homossexuais ao longo da história humana - e
sucede ainda hoje, como GM e os seus defensores não podem ignorar.
Porque,
cabe relembrar, nunca ninguém foi exterminado ou linchado por apelidar
os homossexuais de "anormais" ou "desviantes". Já quem mata e lincha
homossexuais usa sempre esses termos. Estamos entendidos sobre quem cala
e persegue e lincha quem e quanto ao potencial danoso das palavras de
GM? Basta aliás, para perceber o que está em causa, questionar se algum
dos que tanto defendem "o direito de opinião" de GM o faria se este, em
vez de chamar "anomalia" à homossexualidade, tivesse dito o mesmo dos
judeus - também durante séculos considerados "errados" e "doentios".
Quem destas pessoas viria nesse caso a público invectivar os críticos de
GM por exigirem um pronunciamento da Ordem em vez de se limitarem a
"refutar" a sua "opinião"? Deixemo-nos de tergiversações: quem defende
GM e aquilo que classifica como "o seu direito a expressar opiniões"
apenas o faz por considerar aceitável a que expressou. Ou não se
encarniçaria contra os que opinaram sobre a "opinião" de GM
considerando-a ela sim anómala do ponto de vista científico e um desvio
dos seus deveres enquanto médico.
É
muito simples: foi como médico que GM deu a entrevista. A Ordem dos
Médicos tem um mandato legal, público, para certificar que os
profissionais por ela autorizados agem de acordo com as regras
deontológicas e científicas em vigor; que não praticam o charlatanismo
ou difundem falsidades científicas e ideias sobre saúde contrárias às
legis artis e prejudiciais para a comunidade. Não é uma opção da Ordem; é
uma obrigação. E tal como abriu um procedimento em relação a Manuel
Pinto Coelho por este ter dado uma entrevista (também ao Expresso) a
dizer que se deve beber água do mar e que usar protetor solar é um erro,
não pode não o fazer face a um médico que qualifica a homossexualidade
como anomalia, portanto doença ou afeção, e "desvio de personalidade",
pronunciando-se publicamente com termos que pertencem à especialidade de
psiquiatria, que não é a sua, e contra o consenso científico desta.
Aliás o Conselho Nacional da OM fez um comunicado público, há pouco mais
de um mês, a acusar Pinto Coelho de "defender práticas que podem
constituir um atentado à saúde" (curioso, não se deu por qualquer
movimento de defesa da "liberdade de expressão" deste clínico), acusação
que o atual bastonário, Miguel Guimarães, repetiu numa entrevista ao
Expresso anteontem. Mas, questionado sobre se o que GM disse é
igualmente um atentado à saúde pública, foi muito mais cauteloso: "É uma
questão diferente. (...) São [declarações] más para um grupo de pessoas
que podem sentir-se segregadas". Para o bastonário, pelos vistos, o
facto de as afirmações do médico GM não terem fundamento científico,
serem discriminatórias e validarem discriminações não é um problema de
saúde pública, é "de um grupo de pessoas". Ficamos a saber que para este
sucessor de GM algo que afeta "só" os homossexuais não é um problema da
comunidade.
A ideia, que tantos
martelam nos media, de que é "preciso" defender uma "liberdade de
expressão" entendida como a liberdade de um discurso discriminatório que
atente gratuitamente contra a dignidade de indivíduos ou grupos não é
só uma ideia estúpida e desonesta nos tempos em que esse discurso
domina, com toda a virulência, as caixas de comentários e as tais "redes
sociais". É uma ideia contrariada pela própria Constituição e pela
Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, pactos escritos da nossa
comunidade que valorizam mais (e bem) a dignidade humana - portanto a
liberdade de ser - que a liberdade de dizer. Porque o nosso princípio
básico civilizacional é o respeito mútuo, a ideia de que o outro vale
tanto como eu, tem os mesmos direitos, é igual a mim. Não tenho por isso
o direito de o agredir a não ser em legítima defesa; não tenho porque
sentir-me agredida pela sua mera existência. Esse sentimento, o de
alguém se sentir ameaçado pelo que considera outro, é que é uma
anomalia. Alimentá-lo, credibilizá-lo e tentar lucrar com ele é a
negação de tudo o que estamos a tentar construir desde Auschwitz.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
24/07/17
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