Carlos Gabriel,
o Vidente de Fátima
Bruxos, curandeiros e cartomantes há muitos, mas só um se apresenta como "vidente" e com a imagem de Jesus Cristo. Depois dos anúncios à beira da estrada, "Carlos Gabriel, o Vidente de Fátima" saltou para a imprensa. A vidência está a correr bem.
As promessas de Carlos Gabriel não são diferentes de todos os seus
concorrentes neste ramo de negócio: diz que tudo lhe "é possível".
Afirma ter "provas dadas" em "problemas na obtenção dos […] direitos"
dos seus clientes, "situações de saúde, desequilíbrios de personalidades
e espirituais". Dado o tecnicismo dessas generalidades, acrescenta,
para ficarmos em terreno conhecido, "maus olhados, maldições, cobrantos
[sic], trabalhos de feitiçaria para a destruição da sua vida ou de
familiares", "vícios", "situações de casais", destruição do "seu
negócio", e, reiterando, "problemas íntimos, amorosos e familiares".
A
mensagem termina dizendo: "Nestes últimos 23 anos, onde muitos
falharam, este irmão tem demonstrado a sua magnífica obra". O anúncio é
escrito na terceira pessoa, por um narrador não identificado. Esse
afastamento dá-lhe um valor de testemunho exterior, uma ratificação por
"alguém" das qualidades do "vidente". Aliás, mais de metade do texto
escrito no anúncio é constituído por dois testemunhos anónimos. O
primeiro é narrado por uma mulher cuja "relação" a atraiçoou. O segundo é
do "José Miguel", a quem tudo aconteceu. Problemas familiares, partiu
uma perna, problemas no trabalho, desemprego, dores de cabeça. Ambos
consultaram o "irmão" com bons resultados. À mulher, bastou um mês; o
homem não seguiu os conselhos da primeira consulta e logo a seguir
"quase perdi o meu filho". Voltou ao "irmão" e hoje está feliz, ele e a
família.
Como
recorrer a esta ajuda? As marcações são "sempre às segundas-feiras",
por telemóvel, e o atendimento é "às quartas no local sagrado de Fátima,
quintas em Aveiro e sextas no Porto". Existe um serviço adicional, dado
que Carlos Gabriel ´da "consultas também por carta". É um negócio com
um atendimento bem organizado - e pensado, pois a resposta às cartas só
se dá "após devida análise".
Como outros concorrentes,
Carlos Gabriel faz da vidência um suplemento da religião católica. Todo a
mensagem parte desse pressuposto. Primeiro, pelo nome: "vidente de
Fátima". Sendo os pastorinhos conhecidos por videntes de Fátima, a
apropriação do qualificativo desde logo o encosta ao fenómeno católico
de Fátima, pela vidência e pelo local, o "local sagrado de Fátima".
Torna-se irrelevante saber se Carlos Gabriel é de facto de Fátima.
Segundo, pelo "testemunho" de "José Miguel", que percebeu que na sua
vida "algo se passava realmente fora do normal" - isto é, paranormal - e
recorreu ao "irmão" "sem nunca ter recorrido a pessoas ligadas ao mundo
Espiritual". Esta frase pretende evitar quaisquer atritos com a
religiosidade católica dos possíveis clientes. Faz das consultas de
Carlos Gabriel um acréscimo à religião, ou uma actividade paralela, que
tenta não colidir com o catolicismo.
Todavia, apropria-se
dele, na referência fatimista e na imagem em plano médio de Jesus Cristo
que acompanha toda a sua publicidade. Jesus é retratado sem acção, mas o
contacto directo com o observador é inescapável: dado que Jesus olha
para mim, é Jesus quem anuncia aquela mensagem; Carlos Gabriel assume-se
com Cristo ou mesmo em vez dele (dado que, por inferência, o
catolicismo não resolve os problemas que ele resolve). Não há qualquer
referência escrita a Cristo, nem sequer se diz que é ele o retratado,
mas a sua presença icónica estabelece a relação causa-efeito entre o
"vidente" e Cristo, sem comprometer o mensageiro. Apesar de os anúncios
de Carlos Gabriel serem horríveis, mal escritos e com erros
ortográficos, numa coisa o "vidente" foi previdente: o abuso do
significado atribuído à imagem, por impossibilidade legal ou moral de o
transmitir por escrito, é muito comum na publicidade.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
26/04/17
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