República de eunucos
Dei por mim, mal, esta semana, quando abordado por jornalistas, a não
comentar dois casos por achar que a minha posição ia ser impopular. Um
dos casos é o dos juízes que decidiram os contratos de associação, outro
o dos secretários de Estado convidados pela Galp para o Euro. Vamos já
tratar de resolver isso.
Primeiro a Galp, o que teria eu feito, as
razões para isso, e uma possível solução. Se tivesse sido convidado
pela Galp para ir ver a final a Paris teria recusado por três razões, e
nenhuma delas é a ética republicana. A primeira é que, salvo algumas
recaídas pelo Sporting, não gosto o suficiente de bola para perder um
dia nisso; outra é o meu pânico de aviões. Mas vamos supor que queria ir
ver o jogo e não tinha medo de andar de avião. Não teria ido à mesma
pela terceira razão, que é não aceitar viajar a convite de uma empresa
privada. Mas esta decisão de não ir não teria sido tomada de olhos
semicerrados, em conferência telepática com a alma de José Estêvão, com a
mão direita pousada sobre o busto do Teófilo Braga, descendo sobre mim
uma diáfana luz verde-rubra (a tal ética republicana) que iluminaria a
minha decisão. Não, não aceitaria viajar a convite da Galp pura e
simplesmente para não virem dizer que viajei a convite da Galp. Sabendo
que jamais seria influenciado a favorecer qualquer empresa por uma ida à
bola, seria uma decisão calculista, taticista, hipócrita, cobarde. E
por isso os governantes que aceitaram ir, que não conheço pessoalmente
mas de quem tenho uma excelente impressão, revelaram ingenuidade, apenas
isso. Acreditar que algum dos secretários de Estado vai mudar a sua
opinião sobre a empresa só porque se viram uns aos outros ao minuto 109,
de lágrima no olho, gritar aos pulos "Gooooolo... f!#$#-se, o Éder é
lindo. Campeões c#$#$## é no mínimo caricato.
Os governantes
passam a vida a ser encharcados de lembranças e convites, a maior parte
das vezes veem-se gregos para se livrarem das bugigangas sem ser de
forma ofensiva, o que aliás transformou os gabinetes ministeriais em
depósitos gerais de bibelôs, passados de governo em governo, enfiados
dentro de armários e gavetas até cima, abandonados em salas de espera
deprimentes, despachados para secretárias, motoristas e assessores,
pessoal do apoio e quem mais apareça pela frente, que teriam já morrido
soterrados em tarecos não tivesse aparecido entretanto o OLX.
Mas
pode dizer-se que o valor do presente aqui era alto (era, sobretudo
quando comparado com o salário mensal líquido de um secretário de
Estado, abaixo dos três mil euros, outra discussão que ninguém quer
abrir) e que, mesmo não havendo benefício, pode haver essa suspeita. Mas
então é preciso criar regras, mas regras inteligentes, e regras
inteligentes são aquelas que sejam transparentes e conhecidas e que
permitam adequação ao caso concreto. E este é um bom exemplo: a natureza
e excecionalidade do evento deveria permitir que o patrocinador da
seleção convidasse membros do governo, deputados, magistrados (a final
do Euro jogada por Portugal é diferente de um convite pela Galp para ir
ver o concerto da Beyoncé a Las Vegas, e é até diferente de bilhetes
para o Benfica-Beira-Mar no camarote da empresa), e essa excecionalidade
deveria poder ser declarada e controlada por alguém (por exemplo, nos
senado dos EUA o Select Committee on Ethics responde a questões sobre o
valor dos presentes, e pode conceder autorizações especiais para os
receber). Mas o que é ainda mais importante é que haja total
transparência sobre o que se recebe e de quem: desde que as ofertas
sejam obrigatoriamente declaradas periodicamente, a opinião pública e as
instâncias de controlo farão o seu trabalho. Mas enquanto não houver
regras claras, nem procedimentos, nem transparência, continuaremos a
lançar suspeitas e suspeições de quem recebe, ou a fomentar o calculismo
das cautelas.
Sobre os juízes chacinados em público, um por ter
uma filha nos colégios, que afinal não tinha, gozado no Público por ser
católico e ter seis filhos, e a juíza ridicularizada por ter estado num
gabinete e por ter sido, ou ser, do PS, ironizei nas redes sociais com
um anúncio pedindo juízes sem filhos, nem ideologia, nem partido, para
decidir os contratos de associação. Terem cérebro ajudava, mas não era
obrigatório.
Se a humanidade é dividida entre os que gostam de
cães e os que gostam de gatos, todos os alunos de Direito sabem que o
mundo se divide entre os que querem ser advogados, os que querem ser
Ministério Público e os que querem ser juízes. E, tal como o abismo
entre pessoas-cão e pessoas-gato, um jovem que quer ser advogado não é
do mesmo planeta que um jovem que quer ser juiz. Durante muitos anos
pensei assim e tive sempre sérias dificuldades em compreender como é que
alguém podia querer ser juiz. Sei hoje claramente onde residia esse meu
desconforto: num Estado de direito apenas os juízes têm poder absoluto,
e qualquer espírito livre enquanto jovem reage mal a qualquer forma de
poder absoluto. Mas o que aprendi desde aí foi que, por mais absoluto
que seja o poder dos juízes, não pode deixar de ser assim sob pena de
não haver Estado de direito. E aprendi ainda outra coisa: a justiça dos
homens será sempre tão imperfeita quanto imperfeitos são os homens -
esta constatação a muitos dá-lhes para tentarem fazer homens mais
perfeitos, a outros para fazerem revoluções, a mim deu-me para encontrar
a justiça perfeita fora deste mundo. Mas deu--me também para ir cada
vez mais respeitando os juízes de cá, na insolúvel contradição do seu
poder absoluto e das suas humanas fraquezas, na angústia que isso não
pode deixar de lhes causar em cada caso, em cada assinatura, em cada
dia.
E por isso não vale a pena procurarmos juízes eunucos, sem
passado, nem história, nem vida, nem alma, nem governantes que não
gostam de ir ver a final do Europeu do país que servem. Até porque isso
seria bem pior.
PS. Cinco pens daquelas com uma
fita para pôr à volta do pescoço ("Dr., leve mais para os seus
meninos"), umas garrafas de espumante ("da nossa produção"), uma caneta
de ponta de borracha para o tablet, uma taça ou bandeja de louça
("recordação da visita"), alguns porta-chaves, uma caneta e inúmeros
galhardetes toponímicos - são os presentes que me recordo de ter
recebido no meu consulado de 27 dias de secretário de Estado da
Administração Local. Uns trouxe comigo, outros dei, outros deixei para
trás.
* Professor de Direito Fiscal na Universidade Católica
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
07/08/16
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