O eterno problema
da dívida da Argentina
Uma velha piada argentina explica ironicamente
que o problema com a dívida do país não é o facto de ser externa, mas
sim eterna. Dado que o segredo para acabar com o ciclo de expansão e
recessão está no reconhecimento precoce da precariedade e da natureza
fugaz do financiamento abundante, esperemos que as lições de 2001 a 2015
não sejam esquecidas.
A Argentina
emergiu, recentemente, de quase 15 anos na mais litigiosa falência
soberana dos tempos modernos, se não de sempre. Agora tem a oportunidade
de reentrar no sistema financeiro global e construir um futuro mais
estável e próspero. É uma oportunidade que o país deve ter o cuidado de
não desperdiçar.
A longa ausência da Argentina dos mercados financeiros
internacionais começou em Dezembro de 2001, quando uma profunda crise
económica provocou o fim dos quase dez anos do Plano de Convertibilidade
- que fixava o peso argentino ao dólar norte-americano - e marcou o
início do ano sem banca conhecido como "Corralito".
Em 2005, parecia estar prestes a surgir uma solução para a
crise da dívida. Mas uma série de factores complicaram as negociações.
Por um lado, a dívida era enorme, ascendendo a mais de 100 mil milhões
de dólares (incluindo o pagamento de juros vencidos). De facto, o
incumprimento externo da Argentina era o maior até à recente
reestruturação da Grécia. Por outro lado, a dívida era altamente
complexa, com 152 tipos de obrigações, seis moedas e oito jurisdições.
Mas o maior problema que a Argentina enfrentou foi a relutância
dos credores em aceitar a troca de dívida proposta. Com quase um quarto
dos credores a recusarem perdões parciais da dívida - uma grande parte,
comparando com outras negociações de dívida soberana -, as opções da
Argentina foram severamente restringidas. Sem surpresa, foi necessária
outra troca de dívida em 2010.
Foi então que, em 2014, o juiz do Tribunal Federal dos EUA
Thomas P. Griesa decidiu a favor dos resistentes (na sua maioria os
chamados fundos abutres), determinando que estes não tinham sido
tratados de igual forma e que, por isso, a Argentina não poderia fazer
pagamentos da sua dívida reestruturada antes de pagar aos resistentes.
Isso impulsionou uma nova onda de tensão nas negociações com os credores
resistentes. A 30 de Julho de 2014, a Argentina entra em incumprimento
pela segunda vez em 13 anos.
Finalmente, em Fevereiro passado, Griesa acordou pôr fim às
restrições se a Argentina revogasse as leis que impediam o pagamento da
sua dívida que estava em incumprimento, e pagasse aos obrigacionistas
que concordassem até ao final desse mês. Com o novo Governo a chegar a
um acordo com os resistentes, o tempo da Argentina em falência está a
chegar ao fim e, em breve, o país estará livre - ou pelo menos assim
parece.
Na verdade, o fim do jogo não será simples. Para começar,
apesar de não ser possível medir com precisão os custos económicos e
sociais de lidar com os resistentes, é seguro dizer que foram
substanciais. E esses custos não estão completamente no passado. Vão ter
consequências futuras, uma vez que grande parte da dívida emitida em
2016 serviu, na verdade, para refinanciar dívida antiga.
Além disso, com os credores internacionais prontos e dispostos a
recomeçar os empréstimos à Argentina, é fundamental que o país seja
cuidadoso quando assumir nova dívida externa. O processo longo e
dispendioso do qual a Argentina está agora a sair deve convencer os
governos actuais e futuros sobre a necessidade de ter atenção aos
perigos do endividamento externo. E, no entanto, esta nem é a primeira
vez que um elevado montante de endividamento externo acaba mal para o
país.
Certamente não serão os credores internacionais a impôr limites
na Argentina (pelo menos por agora). Com os activos de rendimento fixo a
oferecerem retornos nominais baixos e até negativos - 70% da dívida de
economias avançadas negoceia, actualmente, com taxas de juro nominais
negativas -, sendo os retornos reais ainda mais baixos, as ofertas da
Argentina, com retornos em dólares 7% mais elevados, são muito
tentadoras.
Do ponto de vista da Argentina, o acesso renovado aos mercados
financeiros internacionais compensa o custo de chegar a acordo com os
resistentes. Durante anos, o governo da Argentina tem vindo a financiar
défices com a máquina de impressão, resultando numa inflação elevada,
agora acima de 30%. O financiamento convencional da dívida construirá o
caminho para uma estabilização dos preços. Também permitirá à Argentina
responder à necessidade reprimida - devido à longa interrupção no
financiamento externo do país - de actualizar as infra-estruturas
básicas.
Contudo, apesar de o governo da Argentina precisar claramente
de financiamento, poderá ir longe demais – mais não seja porque os
governos regionais estão também ansiosos por financiar-se. Para além do
governo central, cerca de metade das 24 províncias da Argentina
(contando com Buenos Aires) estão activamente à procura de financiamento
externo. Algumas estimativas sugerem que o financiamento regional
iminente poderá ascender a mais de cinco mil milhões de dólares em
dívida externa.
Esta tendência seria menos preocupante se as finanças regionais
fossem robustas e as perspectivas de crescimento sonantes. Não é o
caso. Pelo menos dez províncias da Argentina já enfrentam algum tipo de
crise económica. Dado o papel fundamental que os excessos regionais
tiveram na crise da qual o país acaba de escapar (um papel semelhante ao
que desempenharam no maior pânico financeiro do século XIX, a Crise
Baring de 1890), nada disso deve ser tomado de ânimo leve. Como se o
governo da Argentina não enfrentasse já desafios suficientes, terá
também de enfrentar a difícil tarefa de conter as regiões.
Uma velha piada argentina explica ironicamente que o problema
com a dívida do país não é o facto de ser externa, mas sim eterna. Dado
que o segredo para acabar com o ciclo de expansão e recessão está no
reconhecimento precoce da precariedade e da natureza fugaz do
financiamento abundante, esperemos que as lições de 2001 a 2015 não
sejam esquecidas. Isso significa resistir à tentação de acumular um
amontoado de dívida com juros elevados.
* Professora de International Financial System na Kennedy School of Government da Harvard University.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
17/08/16
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