23/08/2016

CARMEN REINHART

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O eterno problema 
da dívida da Argentina

Uma velha piada argentina explica ironicamente que o problema com a dívida do país não é o facto de ser externa, mas sim eterna. Dado que o segredo para acabar com o ciclo de expansão e recessão está no reconhecimento precoce da precariedade e da natureza fugaz do financiamento abundante, esperemos que as lições de 2001 a 2015 não sejam esquecidas.

A Argentina emergiu, recentemente, de quase 15 anos na mais litigiosa falência soberana dos tempos modernos, se não de sempre. Agora tem a oportunidade de reentrar no sistema financeiro global e construir um futuro mais estável e próspero. É uma oportunidade que o país deve ter o cuidado de não desperdiçar.

A longa ausência da Argentina dos mercados financeiros internacionais começou em Dezembro de 2001, quando uma profunda crise económica provocou o fim dos quase dez anos do Plano de Convertibilidade - que fixava o peso argentino ao dólar norte-americano - e marcou o início do ano sem banca conhecido como "Corralito".

Em 2005, parecia estar prestes a surgir uma solução para a crise da dívida. Mas uma série de factores complicaram as negociações. Por um lado, a dívida era enorme, ascendendo a mais de 100 mil milhões de dólares (incluindo o pagamento de juros vencidos). De facto, o incumprimento externo da Argentina era o maior até à recente reestruturação da Grécia. Por outro lado, a dívida era altamente complexa, com 152 tipos de obrigações, seis moedas e oito jurisdições.

Mas o maior problema que a Argentina enfrentou foi a relutância dos credores em aceitar a troca de dívida proposta. Com quase um quarto dos credores a recusarem perdões parciais da dívida - uma grande parte, comparando com outras negociações de dívida soberana -, as opções da Argentina foram severamente restringidas. Sem surpresa, foi necessária outra troca de dívida em 2010.

Foi então que, em 2014, o juiz do Tribunal Federal dos EUA Thomas P. Griesa decidiu a favor dos resistentes (na sua maioria os chamados fundos abutres), determinando que estes não tinham sido tratados de igual forma e que, por isso, a Argentina não poderia fazer pagamentos da sua dívida reestruturada antes de pagar aos resistentes. Isso impulsionou uma nova onda de tensão nas negociações com os credores resistentes. A 30 de Julho de 2014, a Argentina entra em incumprimento pela segunda vez em 13 anos.

Finalmente, em Fevereiro passado, Griesa acordou pôr fim às restrições se a Argentina revogasse as leis que impediam o pagamento da sua dívida que estava em incumprimento, e pagasse aos obrigacionistas que concordassem até ao final desse mês. Com o novo Governo a chegar a um acordo com os resistentes, o tempo da Argentina em falência está a chegar ao fim e, em breve, o país estará livre - ou pelo menos assim parece.

Na verdade, o fim do jogo não será simples. Para começar, apesar de não ser possível medir com precisão os custos económicos e sociais de lidar com os resistentes, é seguro dizer que foram substanciais. E esses custos não estão completamente no passado. Vão ter consequências futuras, uma vez que grande parte da dívida emitida em 2016 serviu, na verdade, para refinanciar dívida antiga.

Além disso, com os credores internacionais prontos e dispostos a recomeçar os empréstimos à Argentina, é fundamental que o país seja cuidadoso quando assumir nova dívida externa. O processo longo e dispendioso do qual a Argentina está agora a sair deve convencer os governos actuais e futuros sobre a necessidade de ter atenção aos perigos do endividamento externo. E, no entanto, esta nem é a primeira vez que um elevado montante de endividamento externo acaba mal para o país.

Certamente não serão os credores internacionais a impôr limites na Argentina (pelo menos por agora). Com os activos de rendimento fixo a oferecerem retornos nominais baixos e até negativos - 70% da dívida de economias avançadas negoceia, actualmente, com taxas de juro nominais negativas -, sendo os retornos reais ainda mais baixos, as ofertas da Argentina, com retornos em dólares 7% mais elevados, são muito tentadoras.

Do ponto de vista da Argentina, o acesso renovado aos mercados financeiros internacionais compensa o custo de chegar a acordo com os resistentes. Durante anos, o governo da Argentina tem vindo a financiar défices com a máquina de impressão, resultando numa inflação elevada, agora acima de 30%. O financiamento convencional da dívida construirá o caminho para uma estabilização dos preços. Também permitirá à Argentina responder à necessidade reprimida - devido à longa interrupção no financiamento externo do país - de actualizar as infra-estruturas básicas.

Contudo, apesar de o governo da Argentina precisar claramente de financiamento, poderá ir longe demais – mais não seja porque os governos regionais estão também ansiosos por financiar-se. Para além do governo central, cerca de metade das 24 províncias da Argentina (contando com Buenos Aires) estão activamente à procura de financiamento externo. Algumas estimativas sugerem que o financiamento regional iminente poderá ascender a mais de cinco mil milhões de dólares em dívida externa.

Esta tendência seria menos preocupante se as finanças regionais fossem robustas e as perspectivas de crescimento sonantes. Não é o caso. Pelo menos dez províncias da Argentina já enfrentam algum tipo de crise económica. Dado o papel fundamental que os excessos regionais tiveram na crise da qual o país acaba de escapar (um papel semelhante ao que desempenharam no maior pânico financeiro do século XIX, a Crise Baring de 1890), nada disso deve ser tomado de ânimo leve. Como se o governo da Argentina não enfrentasse já desafios suficientes, terá também de enfrentar a difícil tarefa de conter as regiões.

Uma velha piada argentina explica ironicamente que o problema com a dívida do país não é o facto de ser externa, mas sim eterna. Dado que o segredo para acabar com o ciclo de expansão e recessão está no reconhecimento precoce da precariedade e da natureza fugaz do financiamento abundante, esperemos que as lições de 2001 a 2015 não sejam esquecidas. Isso significa resistir à tentação de acumular um amontoado de dívida com juros elevados.

* Professora de International Financial System na Kennedy School of Government da Harvard University.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
17/08/16

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