20/08/2013

NICOLAU DO VALE PAIS

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Evangelho 
segundo as Cigarras 
(uma fábula europeia)

O Criador andava assustado com a sua criação.


Há muitos, muitos anos atrás, quando os animais falavam, as cigarras viviam iludidas na partilha de um território comum com os outros bichos. Incluindo as obstinadas formigas.

As formigas tinham um natural ascendente sobre o resto da bicharada, sobretudo por serem em grande número e ocuparem uma parte substancial do território partilhado, podendo mesmo ser intimidadoras. Era como se toda a floresta tivesse sido feita para elas, cheia de matérias-primas que laboriosamente comerciavam, transformavam e tornavam a comerciar com os outros bichos. Foi assim que as formigas convenceram as cigarras a venderem os seus instrumentos, com que tocavam música e ganhavam a vida, e a comprarem os produtos da labuta obstinada das formiguinhas. Muito industriosas, estas perceberam que tinham de escoar o que produziam. E, depois, produzir mais para escoar ainda mais e mais - inclusive, produzir dinheiro que as cigarras não tinham, para que pudessem comprar mais.

Nos primeiros tempos, as cigarras e as formigas entenderam-se - para vaidade das suas chefias e desconfiança das massas - e parecia que havia mesmo Economia na floresta. Mas depois a coisa complicou-se; rebentaram os armazéns de provisões das formigas - parece que algumas delas eram tão ociosas e frívolas quanto se julga que as cigarras são. Foi o pânico no formigueiro; "e agora"?

A rainha mandou acalmar as obreiras; "não se preocupem", disse. "Vamos resolver isto a bem ou a mal". "As cigarras" - achava ela - "têm a memória curta e estão desorganizadas por nós; são por isso fáceis de enganar. Sob ameaça de esburacarmos as fundações que outrora construímos, vamos coagi-las a tapar os buracos que deixámos com as decisões que tomámos". E foi assim que as cigarras viram as asas cortadas para que, às costas, pudessem transportar até aos formigueiros o pouco com que tinham ficado antes desta tragédia. Foi tal a ironia, que as pobres cigarras se transformaram num paradigma negro da moral da formiga: queriam, de facto, trabalhar, mas já não podiam. O tempo passou, lento e doloroso para as cigarras, doce para as formigas, que cantavam e bailavam com arroz abaixo dos preços de mercado para uns, inflacionado e especulado para outros. Mas foi assim que uma parte dos responsáveis salvou toda a floresta.

De tudo isto sabia o Criador. Pensou numa solução demasiado radical, tipo um outro dilúvio. Mas depois, cansado da violência e dos ajustes vingativos - céus,  o que seria das formigas se outrora não tivessem sido elas também sujeitas à universal clemência?... -  parou para pensar. Pensar se a narrativa de que os seus arcanjos lhe traziam novas todos os dias seria, de facto, a história das cigarras e das formigas, ou, vendo melhor, a história das suas irresponsáveis e venais lideranças; afinal o dinheiro, o Criador sabia-o, é coisa do Diabo. A ficção essa, é coisa dos bichos, e uma das suas mais eficazes maneiras de chegar à verdade. O Criador deu-lhes, então, memória, para os proteger e criatividade para os encorajar.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
16/08/13

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