Cinco Sentidos
Por que revela o WikiLeaks algumas informações tão pouco interessantes? Porque são privadas. É o negócio do século:vender informações irrelevantes como privadas.
Assim também eu
E m Meia-Noite em Paris, Gil Pender (ou Owen Wilson no papel de Woody Allen) regressa à gloriosa década de vinte em Paris e conhece tout le monde, de Hemingway a Fitzgerald e Picasso, de Gauguin a Buñuel. A ideia do filme é simpática à maioria: que bom seria se, com o que sabemos hoje, pudéssemos visitar uma época que consideramos extraordinária e aí nos sentássemos à mesa com os nossos ídolos. A escolha de época do realizador seria comum a muitos, só a reacção dependeria de cada um. No caso de Gil Pender, é irresistível para um escritor que o seu manuscrito seja lido por Gertrude Stein ou Ernest Hemingway. É um sonho! Tudo corre lindamente e com piada até ao momento em que Pender se aproveita de um conhecimento do futuro para se vangloriar no passado e piscar o olho ao presente, dando a ideia de O Anjo Exterminador a Luis Buñuel, que fica confuso e pergunta o mesmo que qualquer espectador: porque é que os convidados não conseguem sair da sala? A graça de o realizador não perceber uma ideia que sabemos ser sua desvaloriza a gravidade ética de um intruso do futuro usar informações privilegiadas na época errada. Teve graça e não me alegrou.
Fazer amigos
Roger Ebert é um célebre crítico de cinema e autor de vários livros, que comecei a seguir por causa do Twitter. A sua participação intensa na rede social é descrita num artigo que escreveu para o Chicago Sun-Times com um título plutarquiano ou dalecarnegieano: «How to win friends and influence people». Explica que twitta sobre acontecimentos invulgares ou para partilhar descobertas curiosas na internet. Até aqui tudo normal para alguém que tem um comportamento profissional na rede. É marcadamente liberal mas é raro cair na facilidade de insultar o Tea Party, escreve bastante sobre cinema e quase todas as semanas descobre fotografias extraordinárias com as estrelas de que mais gosto. Numa das últimas imagens vimos Rita Hayworth a abraçar uma bomba. É generoso na partilha e a dar conselhos sobre como participar no Twitter. Destaco duas advertências suas: não twittar banalidades como «estou a comer uma sopa fria» e não twittar outra vez sobre programas de televisão, porque há pessoas que não estão a ver o mesmo. Roger Ebert diz isto porque não tem cozinheiros na timeline nem nunca viu um programa em companhia twitteira. Ele que venha para cá.
Viver em público
Na conferência anual do Facebook, Mark Zuckerberg anunciou novas funcionalidades para a rede social. As novidades têm sido objecto de crítica por parte de empresas preocupadas com a divulgação de dados privados dos seus clientes. Já não é a primeira vez que o Facebook é acusado de abuso da privacidade dos utilizadores. E desta vez parece não haver grande possibilidade de escapar ao modelo imposto pela rede social. A divisão dos ‘amigos’ em listas permite um conhecimento quase total da vida do utilizador. Mas a particularidade do ‘quem pertence a que lista’ não é a única mudança arriscada na rede. A funcionalidade denominada Timeline – que no Twitter significa o espaço onde conversam as pessoas que cada um segue – permitirá ao utilizador contar a história da sua vida. Não tenhamos dúvidas de que o Facebook é útil. Sou capaz de enumerar várias vantagens para a rede social. Mas fazer da conta uma autobiografia online implica riscos muito altos para os utilizadores. Qual é o objectivo de mostrar o nosso quotidiano ao mundo? Que é feito da ‘dignidade da pessoa humana’? Onde estão os críticos dos reality-shows? Muito provavelmente a actualizar o perfil do Facebook.
Sorte ao amor
Antonia Macaro e Julian Baggini têm um consultório original no Financial Times. Todas as semanas a analista e o filósofo respondem a uma pergunta seleccionada dos leitores. Em «The Shrink and the Sage» têm sido respondidas perguntas sérias da humanidade e a semana passada não foi excepção. Um leitor perguntava se precisamos de parceiro ou parceira para a vida. Como quase todas as questões do género, a resposta é: depende. É certo, no entanto, que, segundo Antonia Macaro, os consultórios de terapeutas e analistas estão cheios de pacientes que sofrem de solidão amorosa. A solução para parece ser a de tentar fazer com que a pessoa chegue à conclusão de que tem de ser a melhor companheira de si própria. Talvez assim seja a melhor companheira de alguém. A ideia é tão complexa e de um optimismo tão estapafúrdio que nem sei por onde começar. Leio o que diz o filósofo. Julian Baggini explica que a maioria dos filósofos não casou e que o celibato faz sentido porque, tal como o sacerdócio, a filosofia exige dedicação total. Relações para sempre só com a filosofia ou com quem estiver em paz consigo mesmo. Acontece em casos de sorte ter tudo no mesmo casal.
O negócio do século
Li um artigo de Andrew Zimmerman Jones sobre Julian Assange, em The Philosopher’s Magazine. O texto prometia Assange, mas acabou por mostrar mais entusiasmo por uma personagem de ficção: Lisbeth Salander, heroína da Trilogia Millenium, uma criação de Stieg Larsson. A ética de Assange e de Salander na actividade de obter informações verdadeiras por vias altamente duvidosas é distinta na medida em que o primeiro adoptou para si a máxima totalitarista de que nenhuma informação é completamente privada e a segunda usa o seu talento informático para descobrir o que mais lhe interessa. As descobertas de Lisbeth dependem do julgamento de valor que faz às suas vítimas. Nada é perdoado a um sacana. Gostamos de ver Salander a funcionar porque percebemos a sua urgência na vingança. Julian Assange é mais difícil de compreender. Por que razão revela ao mundo informações no WikiLeaks, na maior parte das vezes, tão pouco interessantes? Porque são ‘privadas’. E o que é ‘privado’ vende. É este, aliás, o negócio do século: vender o irrelevante como privado. E depois de tornar público o irrisório, fazer com que se anule no colectivo. Isto pode não acabar bem.
IN "SOL"
03/10/11
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