ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
"SÁBADO"
As doenças esquecidas
pelas farmacêuticas
Imagine o seguinte: uma farmacêutica suspende a produção de um
medicamento que não é - nunca foi -, rentável. Este medicamento era a
única alternativa para uma doença que afecta potencialmente 21 milhões
de pessoas, e que é fatal se não for tratada. Há outro fármaco
disponível, mas é tão tóxico que mata 5% dos pacientes. Uns anos mais
tarde, a mesma farmacêutica retoma a produção quando descobre que o
medicamento antes retirado previne o aparecimento de pêlos faciais nas
mulheres.
Continua a não haver injecções para os doentes dos países pobres, mas não faltam cremes para as coquetes europeias. Parece-lhe uma situação inaceitável? E se lhe disséssemos que não é apenas uma história? Isto não só aconteceu no início dos anos 90 - com a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé e que afecta o sistema nervoso central, com um fármaco chamado eflornitina -, como é um cenário relativamente comum nas chamadas doenças tropicais negligenciadas.
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Continua a não haver injecções para os doentes dos países pobres, mas não faltam cremes para as coquetes europeias. Parece-lhe uma situação inaceitável? E se lhe disséssemos que não é apenas uma história? Isto não só aconteceu no início dos anos 90 - com a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé e que afecta o sistema nervoso central, com um fármaco chamado eflornitina -, como é um cenário relativamente comum nas chamadas doenças tropicais negligenciadas.
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Neste
contexto, a notícia de que foi encontrada uma molécula potencialmente
capaz de tratar três destas doenças (a leishmaniose, a doença do sono e a
doença de Chagas, que juntas matam 50 mil pessoas por ano) ganha outra
importância. A descoberta, publicada na revista Nature, dá
conta de que um composto químico baptizado de GNF6702 mostrou ser eficaz
no tratamento de ratos e não ser tóxico para as células humanas, em
laboratório. Os investigadores testaram três milhões de compostos. Mas
ainda está por apurar se a molécula é eficaz em humanos e o risco de
fracasso é alto: estima-se que em cada cinco mil moléculas que funcionam
em ratos, apenas cinco sejam testadas em humanos e só uma chegue às
farmácias.
Um
fármaco eficaz contra três destas doenças acabaria com situações como a
referida no início do texto. E que não é caso único: em 2003, a Roche
doou a um laboratório brasileiro a tecnologia necessária para produzir o
fármaco de referência para a doença de Chagas (uma inflamação causada
por um parasita encontrado em fezes de insectos). Oito milhões de
pessoas em todo o mundo dependiam deste medicamento, e o laboratório
falhou - em 2011, abriu falência e o benznidazol desapareceu do mercado.
Esta doença mata cerca de 10 mil pessoas por ano, segundo os Médicos
Sem Fronteiras, mas só há dois medicamentos eficazes disponíveis e ambos
tóxicos. Os efeitos secundários vão de urticária a dores de cabeça e
depressão.
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Que consequências? Os sintomas das três doenças podem ser assustadores
- Em 30% das pessoas infectadas, a doença de Chagas provoca uma paragem cardíaca
- Numa fase avançada, a doença do sono afecta o cérebro e pode mesmo ser fatal
- A Leishmaniose provoca lesões na pele, o inchaço do fígado e do baço e destrói as mucosas do nariz e da boca
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Doenças pouco atractivas
Apesar de as 18 doenças tropicais consideradas esquecidas pela Organização Mundial de Saúde - recentemente, entrou para a lista a micetoma, uma infecção crónica causada por um fungo - afectarem uma em cada sete pessoas no mundo e causarem a morte de 534 mil por ano, são pouco atractivas para a indústria farmacêutica. Entre 2000 e 2011 foram aprovados 850 novos produtos terapêuticos ao nível mundial; destes, apenas 4% se destinava às doenças dos chamados países pobres.
Porquê? Uma das razões tem a ver com o facto de este mercado ser pouco rentável. Logo, a maioria dos medicamentos disponíveis para estas patologias ou são obsoletos, ou a sua produção é tão escassa que não há em quantidade suficiente. Até porque só há um produtor: a Bayer é a única a fabricar nifurtimox, que se usa tanto para a doença de Chagas como para a doença do sono; a Sanofi-Aventis é a única produtora dos fármacos para a doença do sono e a Gland Pharma tem o exclusivo do medicamento para a leishmaniose.
Outro problema: o próprio esquema de financiamento das farmacêuticas, que depende dos lucros gerados pelo produto final. Se as companhias não conseguem vender os seus produtos a preços altos, então o investimento nestas doenças torna-se insignificante. Um exemplo prático: "Em 2010, o financiamento total registado para a investigação e desenvolvimento do conjunto de doenças tropicais negligenciadas foi de cerca de 800 milhões de euros; em comparação, a empresa Gillette gastou para cima de 660 milhões de euros no desenvolvimento de uma nova máquina de barbear", denunciou a organização Médicos Sem Fronteiras, num relatório de 2012.
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Foi a pensar nas doenças esquecidas que, em 2003, foi criada a organização sem fins lucrativos Drugs for Neglected Diseases Initiative (iniciativa: drogas para doenças negligenciadas), uma parceria de sete organizações de todo o mundo para reduzir os custos de produção e garantir o acesso aos fármacos. Entre 2003 e 2011, com apenas 120 milhões de euros, a organização conseguiu facilitar o desenvolvimento e a implementação de seis novos tratamentos - para a malária, a doença do sono, a leishmaniose e para a doença de Chagas. E, neste momento, estão em curso outros 15 novos fármacos.
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- Em 30% das pessoas infectadas, a doença de Chagas provoca uma paragem cardíaca
- Numa fase avançada, a doença do sono afecta o cérebro e pode mesmo ser fatal
- A Leishmaniose provoca lesões na pele, o inchaço do fígado e do baço e destrói as mucosas do nariz e da boca
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Doenças pouco atractivas
Apesar de as 18 doenças tropicais consideradas esquecidas pela Organização Mundial de Saúde - recentemente, entrou para a lista a micetoma, uma infecção crónica causada por um fungo - afectarem uma em cada sete pessoas no mundo e causarem a morte de 534 mil por ano, são pouco atractivas para a indústria farmacêutica. Entre 2000 e 2011 foram aprovados 850 novos produtos terapêuticos ao nível mundial; destes, apenas 4% se destinava às doenças dos chamados países pobres.
Porquê? Uma das razões tem a ver com o facto de este mercado ser pouco rentável. Logo, a maioria dos medicamentos disponíveis para estas patologias ou são obsoletos, ou a sua produção é tão escassa que não há em quantidade suficiente. Até porque só há um produtor: a Bayer é a única a fabricar nifurtimox, que se usa tanto para a doença de Chagas como para a doença do sono; a Sanofi-Aventis é a única produtora dos fármacos para a doença do sono e a Gland Pharma tem o exclusivo do medicamento para a leishmaniose.
Outro problema: o próprio esquema de financiamento das farmacêuticas, que depende dos lucros gerados pelo produto final. Se as companhias não conseguem vender os seus produtos a preços altos, então o investimento nestas doenças torna-se insignificante. Um exemplo prático: "Em 2010, o financiamento total registado para a investigação e desenvolvimento do conjunto de doenças tropicais negligenciadas foi de cerca de 800 milhões de euros; em comparação, a empresa Gillette gastou para cima de 660 milhões de euros no desenvolvimento de uma nova máquina de barbear", denunciou a organização Médicos Sem Fronteiras, num relatório de 2012.
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Foi a pensar nas doenças esquecidas que, em 2003, foi criada a organização sem fins lucrativos Drugs for Neglected Diseases Initiative (iniciativa: drogas para doenças negligenciadas), uma parceria de sete organizações de todo o mundo para reduzir os custos de produção e garantir o acesso aos fármacos. Entre 2003 e 2011, com apenas 120 milhões de euros, a organização conseguiu facilitar o desenvolvimento e a implementação de seis novos tratamentos - para a malária, a doença do sono, a leishmaniose e para a doença de Chagas. E, neste momento, estão em curso outros 15 novos fármacos.
* Eis um acrescento àquilo que já se sabia da negociata da saúde.
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