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IN "DINHEIRO VIVO"
06/11/18
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Opinião.
A maior ameaça à democracia:
Inovação
"O maior perigo que a democracia liberal enfrenta é que a revolução tecnológica tornará as ditaduras mais eficientes que as democracias"
Em 2020, os cidadãos chineses serão
classificados de acordo com o seu comportamento num mega ranking de
“crédito social”, que irá penalizar os mais dados a compras frívolas,
obsessão com videojogos ou infrações de trânsito, entre outras atitudes,
e premiar os que andarem na linha. O ranking, que está em teste
nalgumas cidades, aproxima-se perigosamente do famoso episódio
“Nosedive” da série “Black Mirror” onde toda a gente é escrava de um
sistema de pontos. Há uns tempos, iríamos pensar nisto como um abuso de
proporções dantescas que só poderia acontecer com um governo
autocrático. Mas estamos em 2018, o primeiro ano do resto da regressão
da democracia liberal.
As eleições intercalares que decorrem hoje nos Estados Unidos são,
talvez, mais importantes que o acto eleitoral que elegeu Donald Trump,
em 2016. Aqui se testa a capacidade de resistência dos pilares da
democracia à infestação de mecanismos importados de sociedades
ditatoriais, começando nas “fake news”, passando pela supressão de
direito ao voto e terminando nos bodes expiatórios que arcam com as
culpas de tudo o que está mal no país.
No entanto, não se trata de uma repetição
da História. Aquilo por que estamos a passar, em 2018, é totalmente novo
e poderá mudar o rumo da Humanidade no próximo século (se antes disso
não tornarmos o planeta inabitável e nos auto-exterminarmos
acidentalmente).
A liberdade total que permitiu aos gigantes de Silicon Valley investir em avanços tecnológicos sem restrições trouxe-nos a esta encruzilhada. Estamos a braços com a perda de controlo sobre os nossos dados pessoais, pouca ou nenhuma responsabilização das empresas que abusam da privacidade dos consumidores, e um modelo económico de utilização de serviços baseado nisso – a venda de informações pessoais para fins publicitários.
Sim, é verdade que aceitámos essa moeda de troca quando fomos a correr comprar smartphones, tablets e relógios inteligentes com apps e serviços gratuitos. Também é verdade que a maioria das pessoas não se importa que andem por aí perfis seus, porque não têm vidas estupidamente interessantes e nada a esconder. O perigo não está aí, em saber-se que cor de meias alguém prefere. O perigo está numa erosão tal do valor da privacidade que o fundamento da democracia se desmorone sem que se dê por isso.
O historiador israelita Yuval Noah Harari tem avisado para algo ainda mais assustador: a utilização da inteligência artificial e da analítica de big data em benefício dos ditadores. Isso mesmo. O sistema liberal é, em essência, distribuído, enquanto a ditadura centraliza a informação e concentra o poder num único sítio. A tecnologia do século XX tornava a concentração ineficiente, porque não havia maneira de processar a informação com a rapidez necessária – não havia máquinas de escrever e salas de arquivo suficientes para isso.
“A democracia e o capitalismo derrotaram o fascismo e o comunismo porque eram melhores a processar dados e a tomar decisões”, declarou Harari numa TED Talk. Mas a tecnologia do século XXI? “Com a ascensão da inteligência artificial e machine learning, pode tornar-se possível processar enormes quantidades de informação de forma eficiente num único lugar. E aí, o processamento centralizado de dados será mais eficiente que o distribuído.” Porque não é uma lei da natureza que a centralização do processamento seja sempre menos eficiente que o processamento distribuído.
Talvez o discurso de Harari soe a demasiado apocalíptico para quem não anda a prestar atenção. Para quem anda, o aviso é aterrador. “O maior perigo que a democracia liberal enfrenta é que a revolução das tecnologias de informação tornará as ditaduras mais eficientes que as democracias.”
Não sendo possível prever a direcção que a inovação irá levar, os últimos dois anos mostraram-nos que se algo puder ser usado para fins nefastos, sê-lo-á. A demora na reacção de quem tem poder, o ignorar dos avisos de especialistas como Harari ou Gerd Leonhard, a ridicularização dos alertas de Stephen Hawking e Elon Musk – tudo isto ajuda a desenterrar um pouco mais as traves onde assentam os princípios democráticos que tornaram esta inovação possível. A democracia verdadeira pode perecer às mãos da tecnologia que ajudou a criar, e com o aval dos cidadãos enlevados pelas vozes autoritárias. Essa será a tragédia da sociedade mais avançada de sempre.
A liberdade total que permitiu aos gigantes de Silicon Valley investir em avanços tecnológicos sem restrições trouxe-nos a esta encruzilhada. Estamos a braços com a perda de controlo sobre os nossos dados pessoais, pouca ou nenhuma responsabilização das empresas que abusam da privacidade dos consumidores, e um modelo económico de utilização de serviços baseado nisso – a venda de informações pessoais para fins publicitários.
Sim, é verdade que aceitámos essa moeda de troca quando fomos a correr comprar smartphones, tablets e relógios inteligentes com apps e serviços gratuitos. Também é verdade que a maioria das pessoas não se importa que andem por aí perfis seus, porque não têm vidas estupidamente interessantes e nada a esconder. O perigo não está aí, em saber-se que cor de meias alguém prefere. O perigo está numa erosão tal do valor da privacidade que o fundamento da democracia se desmorone sem que se dê por isso.
O historiador israelita Yuval Noah Harari tem avisado para algo ainda mais assustador: a utilização da inteligência artificial e da analítica de big data em benefício dos ditadores. Isso mesmo. O sistema liberal é, em essência, distribuído, enquanto a ditadura centraliza a informação e concentra o poder num único sítio. A tecnologia do século XX tornava a concentração ineficiente, porque não havia maneira de processar a informação com a rapidez necessária – não havia máquinas de escrever e salas de arquivo suficientes para isso.
“A democracia e o capitalismo derrotaram o fascismo e o comunismo porque eram melhores a processar dados e a tomar decisões”, declarou Harari numa TED Talk. Mas a tecnologia do século XXI? “Com a ascensão da inteligência artificial e machine learning, pode tornar-se possível processar enormes quantidades de informação de forma eficiente num único lugar. E aí, o processamento centralizado de dados será mais eficiente que o distribuído.” Porque não é uma lei da natureza que a centralização do processamento seja sempre menos eficiente que o processamento distribuído.
Talvez o discurso de Harari soe a demasiado apocalíptico para quem não anda a prestar atenção. Para quem anda, o aviso é aterrador. “O maior perigo que a democracia liberal enfrenta é que a revolução das tecnologias de informação tornará as ditaduras mais eficientes que as democracias.”
Não sendo possível prever a direcção que a inovação irá levar, os últimos dois anos mostraram-nos que se algo puder ser usado para fins nefastos, sê-lo-á. A demora na reacção de quem tem poder, o ignorar dos avisos de especialistas como Harari ou Gerd Leonhard, a ridicularização dos alertas de Stephen Hawking e Elon Musk – tudo isto ajuda a desenterrar um pouco mais as traves onde assentam os princípios democráticos que tornaram esta inovação possível. A democracia verdadeira pode perecer às mãos da tecnologia que ajudou a criar, e com o aval dos cidadãos enlevados pelas vozes autoritárias. Essa será a tragédia da sociedade mais avançada de sempre.
IN "DINHEIRO VIVO"
06/11/18
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