Um piropo ou um galanteio,
eis a questão
Piropar ou não piropar, eis a questão. As opiniões
dividem-se. A minha também. Não, o assunto não é tão taxativo como
pretendem os defensores cegos da sua criminalização. E não, também não é
tão simples como fazem crer os que atiram a questão para o campo da
mera idiotice.
Como explica nesta edição da Notícias Magazine
Pedro Marta Santos, na sua resenha histórica do piropo, trata-se de
uma questão de poder. E de género. Ou seja, estão reunidos todos os
ingredientes para a polémica. O poder de um género sobre o outro está
na origem das lutas pela emancipação feminina, ou, como se diz de forma
mais moderna, pela igualdade. Foi a ordem natural das coisas que deu aos
homens o direito de tomar a dianteira no jogo da sedução. De uma forma
mais ou menos selvagem. E às mulheres coube o papel, vá lá… de corar. O
inverso seria, no mínimo, indecoroso. Menina séria não tem ouvidos.
Pode ter olhos, pode até olhar, e mesmo apreciar… mas sempre sem
palavras. O silêncio contra o piropo. E esse é um sinal claro de
menorização.
Tudo isto que acabei de relatar é a ordem natural
das coisas, como já disse. Mas foi para contrariar isso que se construiu
a civilização, para combater a ordem natural das coisas, também por
vezes conhecida como barbárie. No jogo do piropo, não há que evitá-lo,
há um não-sei-quê de selvagem. E faz parte do argumentário de quem
defende a sua ilegalidade que a lei faça o trabalho que o mero civismo,
educação e cultura não conseguiram. Que, com o seu chicote – e não, não
pensem nas versões boas de chicote que estão tão em voga – com o seu
chicote legal, acabe por regular o que até agora permanecia indomável:
ouvir um «Ó boa!» na rua.
Não é, nunca será bom, ouvir um «Ó boa!» na rua. E
nunca, nunca será legítimo que alguém o diga, ou que outro alguém seja
obrigado a ouvi-lo. De uma certa forma, um piropo é a antecâmara do
assédio. Como o assédio é o primeiro passo para a violação. Todos os
estágios têm em comum a não concordância, o não consentimento. De quem
ouve. De quem é mais frágil.
Então estamos conversados? Ilegaliza-se o piropo e
pronto. Bom, não tão rápido. Há, nesta questão, pormenores que mudam o
jogo todo. Costuma dizer-se que o diabo está neles, neste caso acontece
que o diabo está na ausência deles. Ou seja, um piropo brutamontes será
sempre isso, uma ofensa. Já um piropo requintado poderá ascender à
categoria de galanteio. E que mulher não gostaria de ouvir isto: «Quero
fazer contigo o que a primavera faz às cerejeiras», como inventou Pablo
Neruda. Ou «Luz do meu fogo, fogo das minhas entranhas. Meu pecado,
minha alma», como escreveu Vladimir Nabokov, em Lolita. Ou mesmo esta
frase de Prince: «Um corpo como o teu devia estar na cadeia porque está
no limite de ser obsceno.»
Fazendo minhas as palavras da Joana Amaral Dias na
crónica que lhe pedimos sobre este tema polémico, ela que é contra a
criminalização. «Frequentemente o piropo é pulha e abjeto, ofende e
enxovalha. Noutras vezes é expressão do desejo. Quando um estranho lhe
oferece flores isso pode ser impulso, a expressão da atração, sem a
qual a interação entre dois desconhecidos seria clandestina.» Ou seja, a
questão é tão complexa que deve, por enquanto, continuar no âmbito
pessoal, das relações e da intimidade dos pensamentos entre as pessoas.
Não há nada que impeça uma mulher de reagir – ao contrário de noutras
formas mais violentas de assédio. Tudo o resto é um exagero. E pode
causar tantos danos como um piropo. Dos maus.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
08/03/15
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