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A indicação de Maria Luís Albuquerque para Comissária Europeia podia ter sido um grande choque, mas não foi. É que a ex-ministra do Estado e das Finanças deixou uma marca no país, e essa marca tem nome. Chama-se Portugal À Frente, ou “a vida das pessoas não está melhor mas a do país está muito melhor”, como dizia Luís Montenegro, na altura líder da bancada parlamentar do PSD.
E a direita está a fazer uma lavagem a essa marca. Começou subrepticiamente, com a transformação de Passos Coelho numa espécie de mártir da causa pública. Foi-se construindo a ideia de que, como D. Sebastião, Passos Coelho apareceria novamente numa manhã de nevoeiro para salvar o país dos excessos da esquerda.
Aí está o principal pilar desta reconstrução do passado. A ideia de que o passismo salvou Portugal dos irresponsáveis tem cada vez mais aderentes entre as gerações que não viveram a troika e que não se lembram do memorando de entendimento. Luís Montenegro vai-se aproveitando dessa renovação geracional para reconstruir a memória histórica dos portugueses.
A indicação de Maria Luís Albuquerque é mais uma prova dessa estratégia. Quem iria repescar a desastrosa ministra que se dedicou a impor a austeridade como política de desfazer sonhos e vidas e a aumentar as desigualdades sócio-económicas do país? Quem quereria a economista que foi acusada de ser “mais papista que o Papa”, isto é, mais “troikista que a troika”? Quem quer a responsável pela conclusão das desastrosas privatizações?
Essa os portugueses não querem. Montenegro quer vender a Maria Luís Albuquerque que acumulou a “interessante experiência” de gerir o país e a sóbria ministra que enfrentou, junto à Alemanha, os devaneios dos perigosos esquerdistas gregos que ameaçavam o Euro. Por isso é que a envia para a Comissão Europeia, onde pode promover a visão de uma tecnocrata competente alinhada com a política europeia. E é isso mesmo que nos quer fazer crer que foi Portugal À Frente.
Sobre as portas giratórias, não diz nada. Da ministra que saiu das Finanças para ir trabalhar no fundo abutre que lucrava com a sua gestão do Banif, não diz nada. Da deputada que acumulou o seu salário com até €100 mil euros que recebia da Arrow Global, não diz nada. Sobre os contratos swap assinados entre as empresas públicas e o Santander, não diz nada. Sobre a privatização da TAP à 25ª hora, já depois da demissão do governo, e que agora sabemos ter indícios de ação criminosa: nada.
Só interessam os mártires. A indicação de Maria Luís Albuquerque é mais um sinal preocupante de que a direita não está a tentar deixar para trás o passismo e a sua má fama, está empenhada no processo ativo da sua reabilitação e percebe que lhe beneficia reconstruir a história e criar o mito.
O potencial sebastiânico do Portugal À Frente e de Passos Coelho vai sendo cultivado para que na próxima crise da direita esteja à mão de semear. Mas essa reconstrução do passado só terá sucesso se não conseguirmos combater a narrativa saudosista com a rejeição categórica de um filtro de nostalgia sobre a austeridade.
Cá entre nós, é verdade que Passos tem um pouco de D. Sebastião: é incompetente, deixa o país em crise, e esperamos que não retorne.
* Jornalista no Esquerda.net. Militante do Bloco de Esquerda
IN "ESQUERDA" - 03/09/24.
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