A crise do futuro?
As derrotas sucessivas da esquerda e a impotência política aparente
faz-nos crer que não há projeto de futuro socialista, de distribuição e
diversidade, de combate às alterações climáticas. Precisamos de um
rompimento. É esse que tem de ser tornado inevitável.
Se quiserem uma imagem do futuro imaginem uma bota a pisar numa cara humana- para sempre – disse Orwell no seu magnus opus 1984
Escrevo no dia 9 de Junho, momentos antes de sabermos os resultados das eleições europeias, onde se antevê uma derrota da esquerda e uma vitória cada vez mais expressiva da extrema-direita no quadro governativo da União Europeia. As derrotas sucessivas da esquerda e a impotência política aparente faz-nos crer que não há projeto de futuro socialista, de distribuição e diversidade, de combate às alterações climáticas. Parece só haver um projeto, o da desigualdade, o da política do medo e de olhar por cima do ombro. There is no alternative, diriam os teóricos do neoliberalismo.
Aceitando que cada situação carrega consigo o seu passado e o seu futuro, é inevitável não olhar para a evolução do capitalismo global com grande apreensão. Os tempos de sociedades com políticas redistributivas mais igualitárias, com a promoção de serviços públicos, parecem estar a tornar-se cada vez mais um sonho longínquo. Pelo contrário, assistimos ao empobrecimento dos Estados, à taxação excessiva sobre o trabalho, à devastação climática e da biodiversidade, à acumulação de propriedade que, como alguns economistas anunciam, mimetiza os regimes de acumulação feudais apropriando a inovação tecnológica como modo de expansão (Tecno-feudalismo, chama-lhe Yannous Varoufakis). Vagas de extrema-direita percorrem a Europa, tornando os Estados progressivamente mais autoritários. A ansiedade é um problema crónico das sociedades contemporâneas do norte global e verifica-se essa emoção nas gerações mais jovens, que crescem num mundo em retrocesso. Por exemplo, a eco-ansiedade é descrita pela American Psychology Association (APA) como o medo crónico de sofrer um cataclismo ambiental que ocorre ao observar o impacto, aparentemente irrevogável, das mudanças climáticas gerando uma preocupação associada ao futuro de si mesmo e das gerações futuras. Da mesma forma, o termo “solastalgia”, cunhado pelo filósofo australiano Glenn Albrecht, define um conjunto de distúrbios psicológicos que ocorrem numa população nativa após mudanças destrutiva no seu território. *
Quando aceitamos que as nossas vidas não podem ser melhores, o nosso único projeto torna-se a raiva social. Nalguns campos até, a estratégia da extrema-direita deixou de ser o negacionismo puro e duro para outros modelos de dissuasão da transformação social. Por exemplo, o neo-negacionismo climático, promovido em diversos órgãos de comunicação, especialmente de direita, diferencia-se do negacionismo tradicional porque já não nega os efeitos reais da crise climática. Ao invés disso, centra-se na promoção da ideia de que já não há caminho possível para inverter a catástrofe, de que a história já acabou e que as revoluções são coisas do século passado. De novo, a bota na cara.
É fácil simplificar a questão entre o debate no âmbito discursivo. Quando debatemos se o que é mais mobilizador é o discurso catastrofista (a distopia que o sistema potenciará) ou o discurso da esperança não reparamos que a questão profunda (e realmente importante) é que a dicotomia da esperança/desesperança é só pensável dentro do que hoje consideramos possível. E cumprir um novo mundo implica utilizar mecanismos de pensamento radicalmente diferentes, onde não haja lugares óbvios. Apesar disso esta problemática, parece-me estar certa sobre um aspeto: o futuro já não existe.
Em francês há dois termos que, embora pareçam semelhantes, são etimologicamente e ontologicamente bastante diferentes: futur e avenir. O futuro, o futuro simples, a mera continuação da trajetória dos sistemas da sociedade dentro dos enquadramentos da possibilidade, tal como hoje os conhecemos, já não é possível. A crença de que o que acontecerá em diante será uma mera replicação do passado ou do presente não só nos rouba o potencial imaginativo como simboliza a morte da agência individual e coletiva. Precisamos de avenir, o que está por vir, de um rompimento. É esse que tem de ser tornado inevitável.
Essa imaginação, no entanto, nunca poderá nascer da elaboração teórica de um “plano”. Não bastam boas ideias, bons programas se a transformação não puder ser vista e imaginada. Como nos processos de criação artística, não basta definir que vamos escrever um livro é preciso desenhar passos tangíveis que potenciem a criação e a criatividade. Só a ação revolucionária pode desbloquear a imaginação revolucionária.
* Atriz, ocasional jornalista freelancer. Membro da Comissão Política do Bloco de Esquerda.
IN "Anticapitalista #74 – julho 2024"
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