10/05/2018

PEDRO TADEU

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Um "totó" 
não pode ser ministro?

Chamar alguém de "totó" é elaborar um insulto suave. Um pouco de sanguinidade, de alma, de paixão na tentativa de achincalhar o próximo exigiria a utilização de adjetivos bem mais agressivos, mesmo condicionados ao respeito pelos limites da chamada boa educação: "atado", "nabo", "palerma"ou "parvo" amachucariam muito mais...

Após a divulgação pelo jornalista Luís Rosa, do Observador, de uma suspeita do Ministério Público sobre Manuel Pinho, segundo a qual ele terá aceite o pagamento pelo GES de uma avença de 15 mil euros durante o período em que foi ministro do governo liderado pelo acusado de corrupção José Sócrates, multiplicaram-se as declarações de oposicionistas, articulistas e analistas com este mote: alguns governantes do tempo do PS de Sócrates estão hoje no executivo e, "com tanta corrupção a acontecer à sua volta", das duas uma: ou foram "cúmplices" ou foram "totós".

Por exemplo (há muitos outros), o advogado José Eduardo Martins, um membro do PSD ex-secretário de Estado dos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes, defendeu, no programa da TSF/Canal Q Sem Moderação, que quem foi "totó" no elenco governamental do PS socrático deveria "tirar consequências" da sua cegueira face a tantas evidências espampanantes e sair da atividade política. Quem, hoje, está no governo e fez parte do executivo de maioria absoluta do Partido Socialista devia demitir-se ou ser demitido.

Passe a desproporcionalidade de um nivelamento pela mesma bitola entre eventuais "cúmplices" em atos de corrupção (o que é crime) com supostos "totós" que não veem o que todos os outros notam (o que é miopia, ingenuidade ou burrice, mas não dá cadeia), tenho a declarar, caro leitor ou leitora, que, do meu ponto de vista, quem defende a demissão dos "totós" do atual governo parece, surpreendentemente, ter uma visão política e da relação desta com a corrupção um pouco "totó".

Está a presumir-se que a grande corrupção de nível governamental neste país estaria circunscrita aos governos do consumidor compulsivo de dinheiro emprestado pelo amigo Carlos Silva... Erro.

A descrição dos problemas, desmandos e abusos revelados, desde, pelo menos, há 20 ou 30 anos por toda uma panóplia de casos sob suspeita de corrupção, em que se destacam agora, pela dimensão, vários negócios do GES de Ricardo Salgado, é a "normalidade" com que todos os intervenientes interrogados pelo Ministério Público falam em comissões, pagamentos de "consultorias", de abertura inopinada de contas bancárias em offshores, de depósitos recebidos sem justificação lógica, de abertura e fecho de empresas fictícias, de negócios ruinosos transnacionais, de licenciamentos a pedido, de todo um funcionamento formalmente irregular mas encarado por esta gente como padronizado, trivializado e convencionado no "mundo dos negócios"... E alguns deles nem arguidos são!

Neste contexto de revelações admitir que só no governo de Sócrates houve ministros que foram "totós" e não viram a corrupção à sua volta é ser, por ironia, "totó", é ignorar isto: a sofisticação a que se chegou nestas operações só pode corresponder a um apuramento, passo a passo, de influências, metodologias e processos que foram resultado de práticas e conhecimentos acumulados ao longo de anos e anos de atividade, de tal forma que até há quem defenda a banalidade naïf desses procedimentos e, agora, encare com surpresa genuína a tentativa da justiça em levá-los a tribunal.

Mesmo que os procuradores da República não tenham sido capazes de elaborar acusações é certamente lógico, com o que sabemos hoje, concluir que a grande corrupção atingiu, no passado, muitos mais governantes e governos do que os de José Sócrates.

Seria, então, bom para o país correr com os "totós" do governo? Seria aconselhável prevenir, no futuro, a contratação para o serviço público de mais "totós"?...

Nesta evolução da nossa democracia, que correu o risco, como os factos e a inteligência comprovam, de institucionalizar a grande corrupção, chegámos a uma práxis na gestão do Estado em que, de facto, parece não haver lugar para "totós".

Um político que vá para o governo sem procurar retirar disso um benefício pessoal é um "totó".

Um político que sirva o interesse público em vez dos interesses particulares de amigos e camaradas é um "totó".

Um político que não distribua empregos e postos bem pagos pela família e amigos é um "totó".

Um político que tente aplicar as suas convicções em vez de se moldar às pressões lobistas é um "totó".

Um político que recuse ser instrumento de grandes conglomerados empresariais é um "totó".

Um político que procure representar dignamente o povo que o elegeu é um "totó".

Um político que entenda ser uma honra trabalhar no governo do seu país, procure ser probo e contido na gestão de dinheiros estatais é um "totó".

Um político que sai da política sem estar mais rico é um "totó".

Um político, em suma, honesto é, nestes tempos loucos, um "totó".

Há muitos políticos da democracia portuguesa que foram "totós", ou seja, que cumpriram a sua participação na vida pública com sentido de dever cívico e ética exemplares.

Não vou nomear políticos do PCP e do Bloco de Esquerda por estas correntes ideológicas terem estado, desde 1975 até agora, afastadas dos lugares de topo da administração central - mas, na verdade, não tendo a corrupção ideologia e poder também afetar militantes destas áreas, os seus líderes e a generalidade dos seus dirigentes bem podem ser enquadrados, com facilidade, neste grupo qualificado de "totós", tanto é o que perdem por não darem o seu talento e capacidade profissional a algum dos partidos do clássico "arco da governação".

Lembrei-me de António Guterres, por exemplo. Não há notícia de o antigo primeiro-ministro português ter retirado grande benefício pessoal dessa passagem pela liderança do executivo. Ganhou currículo, ponto. Ele até se demitiu, intempestivamente, a reclamar "contra o pântano", fosse lá o que isso quisesse dizer, para seguir uma carreira que o levou das aulas gratuitas de matemática a miúdos da Cova da Moura até à liderança da agência para refugiados da ONU.

Guterres teve José Sócrates como ministro do Ambiente e até o foi visitar, em gesto solidário, à cadeia, em Évora, no período da prisão preventiva do principal arguido da Operação Marquês.

Aos olhos do juízo de pessoas como José Eduardo Martins, António Guterres, ao não ver a corrupção em Sócrates, é um "totó". E, segundo esse critério, não poderia ter vida política ativa... Será que Guterres, por ser "totó" não pode ser secretário-geral da ONU?

E o atual Presidente da República? Marcelo Rebelo de Sousa, em toda a sua carreira política absolutamente exemplar do ponto de vista como encara a gestão do dinheiro público, não é um "totó" ao querer transformar "os afetos" numa forma de fazer política?

Não sei se no atual executivo estão ex-ministros de Sócrates que foram cúmplices de crimes de corrupção. Nada aponta, com consistência, para isso mas ninguém tem dúvidas de que, se o Ministério Público tiver indícios suficientes, tratará de os investigar. Certo.

Nenhuma polícia irá, no entanto, procurar descobrir quais foram os "totós" dos tempos de Sócrates, aqueles que fizeram o seu trabalho de forma exemplar e honesta, aqueles que acreditavam que quem estava com eles no governo mantinha a pureza no entendimento dos deveres do serviço que estavam a prestar ao país, aqueles que, apesar de todas as suspeitas e apesar de todos os indícios, recusavam ver maldade corrupta na ação dos colegas ministros por nem lhes passar pela cabeça que alguém pudesse prestar-se a essas práticas criminosas

Na verdade, o que precisamos nos governos não é de espertos, é de "totós" que mantenham ativo um padrão de comportamento na gestão do Estado em que a generosidade e o empenho em favor da causa pública se sobreponham à ganância e ao egoísmo. Os "totós" da política não são "atados", "nabos", "palermas"ou "parvos". Os "totós" da política são o melhor que a política tem.

Peço, por isso, à polícia, por favor, que faça um serviço ao eleitorado e descubra mais políticos "totós".

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
08/05/18

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