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"EXPRESSO"
"EXPRESSO"
Apostas viciadas no futebol português
Há jogos que nunca existiram, clubes sequestrados
e resultados forjados na bancada. As redes internacionais
de manipulação de apostas alastram pelas divisões secundárias do futebol português. O relatório mais recente da Federbet, a publicar em setembro, lança suspeitas sobre mais cinco partidas — duas delas na Primeira Liga. Ninguém está a salvo. Nem se sabe como travar a ameaça
.
Um orifício no muro do topo do Estádio da Tapadinha, em Lisboa,
permite espreitar para o relvado daquele que já foi um dos recintos
desportivos mais emblemáticos da capital. Mas o campo do Atlético Clube
de Portugal, um clube histórico — dos 15 com mais participações na
Primeira Liga —, exibe claros vestígios de decomposição: as paredes
descascadas, ervas a nascer nas bancadas e painéis publicitários em
derrocada. “É como se um vírus tivesse entrado pelo portão e consumido
lentamente o corpo do clube”, diz José, um adepto que leva o filho aos
treinos. Uma figura de estilo que não foge muito dos factos: em 2013, a
antiga direção do Atlético, liderada por Almeida Antunes, vendeu 70% da
SAD à Anping Football Club Limited, uma empresa sediada em Hong Kong e
propriedade do chinês Mao Xiaodong (conhecido no Ocidente como Eric
Mao), já indiciado pela UEFA por fortes suspeitas de corrupção na
combinação de jogos para apostas. O preço: 175 mil euros, dos quais
apenas 50 mil foram pagos. Desde então, o Atlético desceu duas divisões,
desmembrou-se entre SAD e clube (tem duas equipas, uma da SAD e outra
do clube), perdeu sócios, enterrou-se em dívidas e foi investigado por
suspeitas de manipulação de resultados.
Na bancada, junto à
secretaria, o presidente recém-eleito, Ricardo Delgado, de 38 anos, olha
em redor na tentativa de encontrar uma solução para salvar a
instituição. “O Atlético foi sequestrado tanto financeiramente, com
várias contas por pagar, como desportivamente, porque o regulamento não
permite que a equipa do clube [na 2ª divisão distrital] ultrapasse a da
SAD [duas ligas acima, na Divisão de Honra da Associação de Futebol de
Lisboa]. Nós só queremos distância em relação aos investidores e
restituir a honra ao clube”, diz. Uma distância que é facilmente
comprovada na secretaria — os gestores da SAD foram expulsos do estádio,
não há números de telefone e mesmo a correspondência, com muitas
dívidas, é devolvida à procedência.
Em maio de 2016, Armando
Hipólito, acabado de ser empossado como presidente, perdeu a paciência e
fechou a cadeado as instalações da Tapadinha usadas por Xialong “Bruce”
Ji e Xinxin “Nancy” Cao, os representantes de Eric Mao em Alcântara. “O
‘Bruce’ é um homem sem qualquer dignidade, sem escrúpulos”, acusa
Hipólito. “Pressionava os treinadores para colocar em campo os jogadores
que queria e chegou a forçar a entrada no balneário. Nas reuniões,
olhava para o teto, desprezando completamente o que lhe dizíamos. Nunca
deu um cêntimo para o aluguer das instalações e tinha à porta um carro
alugado que nunca pagou. Tivemos de ligar à empresa para vir cá buscar a
viatura.” Mao raramente foi visto pela Tapadinha. “Nancy” deixou de
aparecer em novembro de 2015. “Bruce” Ji acabou por se tornar o único
rosto asiático da SAD. Envolveu-se em muitos conflitos: acabou a
primeira época aos empurrões com o treinador Jorge Simão, que viria a
orientar o Sporting de Braga, e levou mesmo uma bastonada na cabeça de
Fernando Piedade, à época vice-presidente do clube. “Mas fizeram as
pazes e hoje são amigos”, diz um ex-dirigente. Hipólito afirma que o
chinês nunca ostentou uma vida faustosa e que mandava vir pizzas quase
todos os dias para o seu escritório.
“Não podemos pensar nestas
pessoas como elementos da máfia clássica, bem vestidos, com bons carros e
em restaurantes caros. Muitos destes tipos, e este deve ser mais um
caso, são jogadores compulsivos, arrastados para redes internacionais de
manipulação de resultados. Todo o dinheiro que ganham nos jogos que
combinam acabam por gastá-lo em apostas normais”, diz o italiano
Francesco Baranca, secretário-geral da Federbet, uma organização que
monitoriza as apostas desportivas online e luta contra os jogos
combinados.
Baranca foi dos primeiros a alertar para os perigos
do investimento chinês no Atlético, mesmo antes de a UEFA, em 2014, ter
enviado às autoridades desportivas portuguesas um documento secreto que
denunciava os antecedentes de jogos arranjados por Eric Mao na Letónia e
na Estónia e as suas prováveis ligações a Wilson Raj Perumal, um antigo
cabecilha do Sindicato de Singapura — a mais prolífera organização de
fraude em apostas desportivas —, que viciou largas centenas de partidas
em todo o mundo. A carta acabou por ser revelada no Football Leaks.
“Eric Mao é uma personagem suspeita com ligações próximas a jogos
combinados. Ele é CEO da Anping Football Club Limited e dono do Beijing
Glory FC e é também suspeito de manter negócios na Estónia e na
Letónia”, escreveu o Sistema de Deteção de Fraude nas Apostas (BFDS).
“As
organizações criminosas atuam a partir de diferentes zonas do globo,
com destaque para a Ásia, onde estão sinalizados alguns dos principais
rostos da criminalidade associada à viciação de resultados e onde são
detetados os mais elevados volumes de apostas” diz Joaquim Evangelista,
presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF).
“Estas organizações procuram intermediários nos países em que querem
atuar, sejam agentes, dirigentes, árbitros ou jogadores. Pretendem
construir parcerias e criar relações de confiança para garantir como
resultado final a manipulação dentro de campo.” Segundo dirigentes do
Atlético, a Anping de Mao chegou a Alcântara através do treinador Nelo
Vingada, ex-jogador do clube, e do atleta guineense Almani Moreira,
ex-Boavista e que viria a representar o Atlético entre 2013 e 2015,
ambos com passagens pela China.
De acordo com o “Asian Times”,
jornal de Hong Kong, Mao ajudou Vingada a recuperar dinheiro quando o
clube que então treinava, o Dalian Shide, colapsou devido à prisão e
posterior morte do seu proprietário, Xu Ming, em consequência de um
escândalo político. Como contrapartida, o técnico introduziu o chinês à
direção do Atlético e assumiu a presidência da nova SAD no seu primeiro
mês de vida. Confrontado com a ligação na sua recente apresentação como
selecionador da Malásia, Vingada comentou: “Eu não tenho relação com Mao
[...]. O presidente do clube, e não Mao, perguntou-me se eu podia
ajudar, devido à minha experiência na China. Eu aceitei porque tinha
jogado no clube.” De qualquer das formas, ninguém, desde a direção do
Atlético a Nelo Vingada, passando pela Federação Portuguesa de Futebol
(FPF) ou pela polícia, se apercebeu do potencial fraudulento do acordo.
“Existem diversos fatores que tornam as competições em Portugal
vulneráveis à manipulação de resultados. Do lado dos clubes, as
dificuldades financeiras, potenciadas por uma gestão irresponsável e
pela dificuldade em obter financiamento por vias normais, facilitam o
aparecimento de investidores que fazem depender os apoios concedidos ao
envolvimento nestas práticas. Os clubes tornam-se reféns destas
organizações criminosas. Do lado dos jogadores, quanto mais precária for
a sua situação contratual, com salários em atraso, maior é a
vulnerabilidade. Destacam-se ainda contextos de dependência, o vício no
jogo e no álcool, por exemplo, que culminam no endividamento dos agentes
desportivos”, explica Evangelista, que defende um maior rigor na
identificação dos investidores estrangeiros.
“Defendemos que o
regime jurídico das SAD deve merecer uma reflexão, por forma a tornar
mais transparente a proveniência dos capitais e, consequentemente, a
garantir um maior controlo e fiscalização.” Foi recentemente criada uma
linha de denúncia anónima para jogadores aliciados para viciar
resultados, gerida pelo SJPF e pela FPF, no âmbito do programa “Deixa-te
de Joguinhos”.
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Quando os sócios do Atlético se aperceberam do erro, era tarde
demais. Ao plantel tinham chegado jogadores como o guarda-redes letão
Igors Labuts, sinalizado 17 vezes por viciação de resultados, ou Ibrahim
Kargbo, capitão da seleção da Serra Leoa, suspenso da equipa nacional
pelo mesmo motivo. Uma longa investigação do jornal romeno “Gazeta
Sporturilor” coloca ainda os futebolistas Silas, ex-internacional
português, bem como o já referido Almani Moreira na lista de jogadores
do Atlético indiciados pela BFDS. “Já na altura, havia coisas demasiado
evidentes. O guarda-redes letão fartava-se de dar frangos”, diz Armando
Hipólito. “Na derrota por 3-2 contra o Oriental, em que a Polícia
Judiciária fez detenções no fim do encontro, deixou passar uma bola por
baixo dos braços. E, já esta época, pareceu-me muito suspeita a derrota
por 8-0 contra o Casa Pia.” No entanto, e apesar de as agências
internacionais terem registados movimentos pouco usuais de apostas em
alguns jogos do Atlético, nada foi provado. O Atlético ainda tentou em
tribunal reaver os 70% que tinha vendido: perdeu, porque a direção
esqueceu-se de formular o protocolo de colaboração indispensável para o
negócio. Eric Mao e “Bruce” Ji continuaram no poder.
Com o passar
do tempo, conseguiram angariar algum apoio. José Francisco, diretor
comercial de uma empresa de brinquedos e pai de um antigo jogador do
clube, aproximou-se da cúpula chinesa. “Passou a andar atrás do ‘Bruce’
para todo o lado, acompanhava-o nas reuniões, embora não tivesse
qualquer cargo oficial na instituição”, diz um ex-dirigente. Essa
convivência terá levado à constituição da Pré Season, Unipessoal, Lda.,
com Francisco como CEO, uma empresa sediada num 5º andar de um bairro
residencial da Amadora, com atividade aberta para a organização de
feiras, congressos e outros eventos familiares. No entanto, a principal
ação da nova companhia foi o acordo com o Athlone Town, um clube da
segunda divisão irlandesa, investigado por viciação de resultados e tido
como mais uma peça da rede mafiosa comandada por Mao.
Francisco tem outra teoria: diz que a Pré Season não tem participação
chinesa, que saiu do Athlone passados três meses devido a problemas
entre os jogadores locais e os estrangeiros e que não só não foi
contactado pelas autoridades como foi a sua empresa que chamou a polícia
ao estádio da equipa. “A Pré Season estabeleceu um acordo de cooperação
com o Athlone virado para as mais-valias dos atletas que lá colocámos.
Foi dada uma lista de jogadores, e eles escolheram os que queriam. Nunca
tive nada a ver com apostas desportivas”, diz. Para o emblema
britânico, transitaram antigas caras conhecidas de Alcântara: o
treinador Ricardo Cravo, os jogadores José Viegas e Dery Hernández e,
pasme-se, o guarda-redes letão Igors Labuts, que entretanto tinha ido
fazer uma época à Letónia, no Spartaks Jurmala, também na lista de
possíveis batoteiros, além do técnico português Ricardo Monsanto, que
saiu numa fase prematura da época. “Não fui eu que coloquei o Igors no
Athlone. O facto de ter jogado anteriormente no Atlético não passa de
coincidência”, alega José Francisco. As autoridades irlandesas
oficializaram no passado dia 7 de julho a acusação sobre quatro
elementos do Athlone — três jogadores e um elemento da equipa técnica —,
embora não sejam ainda conhecidas as suas identidades.
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Um jornal de Hong Kong envolveu o treinador português Nelo Vingada com Eric Mao, um dos principais cabecilhas do negócio mundial de apostas em jogos de futebol |
Já “Bruce” Ji, continuava o seu processo de integração em Portugal.
Residia na Ajuda e não lhe eram conhecidos muitos amigos. Exceto um:
Omar Scafuro, o italiano de origem libanesa que, no final de 2013, tomou
conta do Beira-Mar. “Ele falava muito dele e dizia que eram próximos”,
testemunha Admar Hipólito, à época responsável pelo futebol da SAD do
Atlético, que também saiu em conflito com os investidores asiáticos. Tal
como Mao, Scafuro já era internacionalmente conhecido pelas suas
burlas: em 1999, tentou comprar o Avelino, da série B italiana, alegando
que tinha o apoio do AC Milan (provocando um famoso desmentido de
Silvio Berlusconi, que disse que para ele “Avelino [no sul de Itália] é
tão desconhecido como a Patagónia”), fugiu de Itália com 3 milhões de
euros obtidos numa fraude financeira, e no Brasil fundou um obscuro
clube de futebol chamado Leme. É daí que chega a Aveiro, trazendo com
ele o filho adotivo, o brasileiro Willyan Barbosa (atual atleta do
Vitória de Setúbal, formado no Leme, transferido para o Torino e depois
emprestado ao Beira-Mar, que o acabou por comprar com uma cláusula de
rescisão de 2 milhões de euros), e um carregamento de italianos: os
jogadores Andrea Cocco, Manuel Daffara e Claudio Zappa, e ainda o
treinador Daniele Fortunato, antigo futebolista da Juventus e da
Atalanta. Parecia tudo bem, mas desconheciam-se dois pormenores:
primeiro, que Scafuro não pagaria um tostão pelos 84,9% da SAD que tinha
adquirido, que forjaria cheques e o patrocínio da Pieralisi, uma
empresa industrial italiana; segundo, que as suas contratações
transalpinas tinham em comum a passagem pelo Albinoleffe, o clube mais
envolvido no “Scommessopoli”, o escândalo de fraude e viciação de
resultados do futebol italiano, em 2011, que apurou que o emblema de
Bérgamo estava totalmente nas mãos dos sindicatos asiáticos de apostas
ilegais e da máfia italiana. Nessa equipa, jogou ainda o romeno Cristian
Muscalu, ex-companheiro de equipa de Kargbo nos azeris do FC Baku,
também suspeito de manipulação.
Scafuro deixou de pagar aos
jogadores e aos restantes funcionários. Em março de 2015, demitiu-se da
SAD, deixando em insolvência o Beira-Mar, uma instituição com mais de 90
anos com um estádio novo feito à medida do Euro-2004. Os aveirenses não
conseguiram reunir os requisitos financeiros para se inscreverem nas
ligas profissionais e caíram para os distritais. O italiano desapareceu —
procurado em Portugal por fuga ao IVA e emissão de cheques em branco,
foi localizado numa operação de trânsito na Roménia, onde disse estar a
viver em Milão. Uma grande mentira. Assim que saiu de Aveiro, Scafuro
assumiu a liderança da SAD do FC Academica Clinceni, da Roménia. Os
investidores? A Anping, de Eric Mao. E mais uma época com enorme
potencial para a viciação de resultados. Meses depois, o italiano voltou
a desaparecer, deixando as roupas no estádio da equipa. O seu paradeiro
é desconhecido.
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De amarelo e negro no Beira-Mar de Scafuro jogava o defesa central
brasileiro Diego Tavares, que como os seus colegas, ficou com cinco
meses de salários em atraso. No verão de 2015, transferiu-se para o
Oriental, clube alfacinha, onde passou a ser um dos atletas mais bem
pagos, com um salário de cerca de 1500 euros mensais. Mas Tavares não
podia ter acabado a temporada em Marvila da pior forma: foi detido após a
última jornada do campeonato por suspeitas de envolvimento no caso
“Jogo Duplo”, que vai levar 28 agentes desportivos a tribunal como
arguidos no maior escândalo nacional relacionado com viciação de
resultados ligados a apostas. De acordo com o inquérito, o brasileiro
desempenhou um papel central: foi ele que, entre outras incidências,
aceitou os 30 mil euros propostos pela célula malaia a operar em
Portugal — composta por Chun Keng Hong, Yap Thong Leong e Lim Gin Seng —
para aldrabar o resultado do Penafiel-Oriental, disputado a 30 de abril
de 2016. As autoridades acreditam que tudo estava feito para que o
Oriental sofresse pelo menos dois golos na primeira parte (over 1.5) e
mais de três golos no total do jogo (over 2.5), num ‘esquema’
intermediado por Carlos “Aranha” Silva, elemento da claque Super
Dragões, e Gustavo Oliveira, ex-jogador de equipas amadoras do distrito
de Aveiro. Tavares terá conseguido angariar três colegas de equipa: o
guarda-redes Rafael Veloso e os defesas João Carvalho e André Almeida,
com a promessa de 7500 euros para cada um. “Nós nunca suspeitámos de
nada. Se isto se confirmar, é como ser traído pela própria mulher”, diz
José Nabais, o presidente do Oriental, que abandonou recentemente a
direção sem qualquer dívida e que viu a sua boa gestão reconhecida pela
UEFA em 2014, aquando da realização da final da Liga dos Campeões em
Lisboa, com a atribuição de um campo relvado ao clube. “Recordo-me de
ver o Diego Tavares a rir-se ao telefone no final da partida, mas, no
momento, estava longe de pensar que pudesse estar relacionado com isso.”
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O acordo terá sido selado numa chamada por videoconferência com Yap
Thong Leong, que lhes terá prometido ainda um bónus de 5 mil euros por
cada penálti assinalado. O trabalho foi realizado lentamente desde o
apito inicial: nos dois primeiros golos, diz a investigação, Diego
Tavares e André Almeida não ofereceram oposição aos adversários, e, no
terceiro, Rafael Veloso dá um enorme ‘frango’, evidente nas imagens
televisivas. “Por estar convencido de que Tavares teria recebido
dinheiro para perder o jogo, o treinador do Oriental, Jorge Andrade,
substituiu-o aos 58 minutos”, lê-se na acusação do DIAP. Sem problema,
uma vez que os intervenientes julgavam que com o 3-2 os seus clientes
estavam satisfeitos. Faltava, no entanto, um golo. Foi então que
“Aranha” telefonou a Diego Tavares, que atendeu no balneário e lhe disse
que já não podia fazer nada. O intermediário, em desespero, desceu a
bancada para transmitir por gestos ao defesa esquerdo João Carvalho que
três não chegavam. Era preciso sofrer o quarto golo. O lateral fica
então especado à espera de um fora de jogo, enquanto Aldair Baldé,
avançado do Penafiel, corre sozinho para a baliza para estabelecer o
resultado final, já em período de descontos. “Aranha” e Gustavo Oliveira
saíram do estádio aos saltos, a gritar golo. O resultado tinha valido
centenas de milhares de euros aos seus patrões. De acordo com a
acusação, verificou-se uma variação anormal das odds antes da partida,
com incidência na derrota do Oriental por mais de três golos, tendo o
live betting o mesmo padrão.
Nabais não sabe nada de apostas. Só
sabe que teve de ouvir os sócios do seu clube gritarem “traidores” e
“impostores” aos jogadores. Numa assembleia-geral, um referiu-lhe que
neste caso imperava a presunção de culpa até se provar o contrário:
todos envolvidos, ninguém é inocente. O presidente avançou com um pedido
de indemnização de um milhão de euros a todos os que mancharam o nome
do clube e, apesar da incredulidade de ter dois velhos jogadores da casa
na lista de arguidos, só pede que se faça justiça: “Isto promove um
clima de desconfiança insuportável. Hoje, quando um jogador falha um
penálti, há quem questione se fez de propósito ou não. Tudo porque a
sociedade apela ao facilitismo, publicita o jogo, o dinheiro fácil.
Mesmo quem pode ganhar 500 a fazer o que gosta prefere fazer o que não
gosta para ganhar 2000.”
Rui Dolores, de 39 anos, ex-jogador que
representou, entre outros, o Boavista, o Paços de Ferreira e o Vitória
de Setúbal, é outro dos arguidos do “Jogo Duplo”, suspeito de servir
como intermediário nos negócios ilegais da célula malaia. No início da
temporada 2014/2015, era treinador adjunto do Freamunde. Este podia ser o
preâmbulo da investigação levada a cabo pela Federbet, a que o Expresso
teve acesso, a uma das incidências mais escabrosas registadas nos
últimos anos no universo mundial das apostas: o “jogo-fantasma” entre o
Freamunde e a equipa espanhola do Ponferradina, virtualmente realizado
na manhã de 4 de agosto de 2014. A partida foi anunciada no site do
Freamunde, mas nunca podia ter acontecido, uma vez que os espanhóis não
sabiam de nada e o clube nortenho havia jogado no dia anterior em
Portimão, para a Taça da Liga. “Os jogos-fantasma são uma das formas de
viciação utilizadas por grupos de crime organizado para ganhar ou lavar
dinheiro”, diz um experiente corretor de apostas de uma casa com sede em
Londres que preferiu o anonimato. “Podem ter ou não o envolvimento de
um dos clubes em questão.” Inicialmente, suspeitou-se que um servidor
ilegal tivesse introduzido o jogo no sistema, enganando as casas de
apostas que disponibilizam as partidas aos seus utilizadores.
Contudo,
a equipa da Federbet, que se deslocou a Portugal para investigar,
chegou a uma tese diferente. “À mesma hora da partida, no campo marcado
em São João de Ver, perto de Freamunde, jogaram duas equipas juvenis,
com camisolas da Juventus, do Barcelona e do Real Madrid, e o resultado
da partida foi o mesmo do do jogo-fantasma: 1-2”, diz Francesco Baranca.
Surpreendidos pela coincidência, os especialistas quiseram saber mais:
apuraram então que os jovens pertenciam a uma escola de futebol
orientada pelo ex-adjunto do Freamunde Rui Dolores e que o responsável
pelo campo tinha recebido 500 euros pelo aluguer. Confrontaram-no, mas
ele não quis revelar mais nada. “Foi então que vimos um indivíduo a
limpar o terreno e a olhar para nós. Parecia que queria dizer qualquer
coisa. Discretamente, abordámo-lo, e ele disse-nos que contava tudo se
lhe pagássemos umas cervejas”, diz Baranca. O funcionário do estádio
relatou que lhe tinham entregue 20 euros para abrir a porta e que, na
bancada, estava apenas um espectador, todo o tempo agarrado a um tablet.
“Disse que estava a enviar informação sobre o jogo para a internet.” As
campainhas de alarme soaram na cabeça da equipa da Federbet — para
haver apostas em tempo real, as casas de jogo têm de enviar para o
terreno um elemento para recolher informação sobre estatísticas e
ocorrências da partida. Era tudo muito estranho. Assim, decidiram
deslocar-se à sede do SC Freamunde para obter mais dados. O presidente
do clube, Manuel Pacheco, não lhes levantou suspeitas, mas o mesmo não
aconteceu com o diretor desportivo, Hilário Leal: “A primeira coisa que
disse quando entrou na sala de reuniões foi: ‘Eu nunca apostei na vida.’
Mas, pouco depois, contou que era amigo dos Gaucci [clã italiano cujo
patriarca é Lucciano Gaucci, o controverso ex-dono do Peruggia que
contratou o filho de Kadhafi]”, afirma Baranca. Posteriormente, os
oficiais da agência dizem ter recolhido indícios de que Hilário, tal
como Dolores, era um apostador habitual. O dirigente do Freamunde
defende-se: diz que não sabe nada sobre o jogo-fantasma, que nunca fez
uma aposta e que os Gaucci são tão seus amigos como tantos outros
italianos que conheceu durante a permanência em Peruggia. “Eu já fui
ouvido duas vezes pela PJ e disse-lhes que fui sempre contra a
manipulação de jogos no Freamunde, ao ponto de na altura ter recebido
cartas com ameaças.” A ligação italiana não fica por aqui: o grosso de
apostas no jogo que nunca existiu veio de uma faixa de terra entre
Nápoles e Reggio Calabria, onde operam organizações mafiosas como a
Camorra e a ’Ndrangheta. As apostas desportivas são muito usadas pelas
máfias para lavagem de dinheiro — mesmo quando não conseguem obter
ganhos com jogos viciados, o sistema permite-lhes diminuir as perdas
abaixo dos 20%, um valor bastante apetecível nesta atividade.
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O advogado Miguel Azevedo Brandão, atual presidente da SAD do
Freamunde, diz que ainda se desconhece o que se passou em São João de
Ver. “Ainda não estava no clube e, por isso, não estou a par do que
aconteceu. Mas acho que a anterior direção foi chamada pela PJ para
prestar depoimentos.” Azevedo Brandão tem razão: na altura em que
aconteceu o incidente tinha acabado de mediar o acordo fraudulento entre
Scafuro e o antigo dono do Beira-Mar, o iraniano Majid Pishyar, que
chegou a acusar o português de conluio com o italiano (Scafuro utilizou a
empresa Equação Troféu, com sede no endereço legal de Azevedo Brandão,
para “encapotar a burla”, nas palavras de Pishyar). O advogado nega e
diz-se igualmente enganado: “Era era bem falante, inteligente e vinha
com uma multinacional italiana por trás. Não desconfiei. Depois, não
pagou, eu não me revia naquilo e percebi que era um buraco sem fundo.
Decidi sair.” Pouco tempo depois, o advogado voltou a trabalhar com
investidores estrangeiros na compra de um clube português: desta feita,
uma empresa argentina interessada no Freamunde. Concluído o acordo, foi
convidado a assumir a gestão da SAD. “Como os dois argentinos não
estavam cá a tempo inteiro e não conheciam o mercado português, optaram
por me convidar para ficar e tentar fazer uma coisa em condições.”
Porém, não lograram os seus objetivos: vender os jogadores argentinos
colocados a rodar no clube. Entretanto, o Freamunde desceu ao terceiro
escalão e os investidores querem desfazer-se do negócio. Ao contrário do
que se passa em outros clubes, tudo indica que o Freamunde vai
conseguir reaver o controlo da SAD. “Os clubes portugueses são
apetecíveis, porque estão mais ou menos bem preparados e são baratos. O
investimento estrangeiro é bem-vindo mas tem de ser regulado, tem de
haver cuidado por parte das instâncias, saber de onde vem o dinheiro, as
apostas e ilegalidades que possam surgir”, diz Azevedo Brandão, que
liderou pessoalmente dois negócios ruinosos.
Os tentáculos deste
gigantesco polvo das apostas chega a todo o lado e não dá sinais de
fraqueza. O relatório de 2016/2017 da Federbet, que vai ser divulgado
somente em setembro, sinaliza cerca de 500 jogos no mundo, cinco dos
quais em Portugal: dois na Primeira Liga, o Feirense-Rio Ave (2-1) e o
Paços de Ferreira-Feirense (0-1), e três na segunda, cujos detalhes não
foram divulgados. A imprensa veiculou várias teorias sobre a suspensão
de apostas nas duas partidas da Liga NOS: desde a jogada de 100 mil
euros de um chinês na Póvoa de Varzim até ao registo de 50 mil euros no
mesmo NIF em Santa Maria da Feira, passando por uma decisão unilateral
da Santa Casa da Misericórdia, tutelar do Placard, apenas pelo alto
risco financeiro.
A Liga encarregou-se de descobrir o que se passou, mas
o facto de a mesma equipa, o Feirense, estar envolvida nos dois
incidentes levantou fumo para os lados de Santa Maria da Feira. Num
comunicado oficial após a vitória contra o Paços de Ferreira, a SAD
declarou: “Toda esta situação, além de voltar a colocar em causa o bom
nome do futebol português, lançou dúvidas e suspeição de forma
irresponsável sobre duas instituições de prestígio no panorama
desportivo nacional [...]. Em comum nas duas situações apenas dois
aspetos — o envolvimento do nome do CD Feirense Futebol SAD e a
insistência em apostas na vitória do clube de Santa Maria da Feira. O
segundo aspeto, por si só, seria suficiente para confirmar o total
alheamento dos elementos afetos a esta sociedade desportiva de toda e
qualquer eventual polémica.” Baranca diz que não é bem assim: “Não
querendo acusar ninguém, há inúmeros casos de equipas que compram outras
e depois informam as redes de apostadores. É preciso investigar para
afastar a suspeição.” O principal investidor do Feirense, o nigeriano
Kunle Soname, é um entendido no assunto: fundou a Bet9ja, o equivalente
nigeriano do Placard, que é um tremendo sucesso no país africano. Jorge
Gonçalves, presidente do Conselho de Administração, diz que o tema não
preocupa o clube: “Estamos de consciência tranquila, nem sequer temos um
advogado a tratar disso. A Liga tomou conta das ocorrências e está a
investigar.”
Não é nas divisões principais que o fenómeno é mais
preocupante, mas sim nas secundárias, profundamente vulneráveis.
Progressivamente, o espectro das apostas chega até às camadas jovens: é
possível realizar apostas em partidas de sub-15. No futuro, talvez
chegue às escolinhas e até aos videojogos, uma vez que já há companhias
de apostas a posicionarem-se em Malta para se dedicarem às apostas em
torneios da FIFA. Preso no meio desta teia, Ricardo Delgado pensa em
refundar o Atlético. Em último caso, um novo nome, uma nova vida. “Há
duas semanas, fui almoçar com o ‘Bruce’ e perguntei-lhe quanto queria
pelos 70%, para nos vermos livres dele. ‘Um milhão’, respondeu. Afundou o
clube, desceu-o duas divisões, manchou-lhe o nome e pede quase dez
vezes mais do que o preço de compra.” Mesmo que o Atlético nasça outra
vez, não fica a salvo de novos esquemas de manipulação. Ninguém está.
Wilson Raj Perumal, o cabecilha da máfia das apostas, já disse mesmo que
“o futebol arrisca-se a tornar-se uma espécie de wrestling, com tudo
encenado”. Talvez seja um exagero, mas mais vale prevenir, porque esta
realidade não vai parar de um dia para o outro. Muitos mais jogos serão
viciados. Vai uma aposta?
* Muito obrigado a Tiago Carrasco pelo excelente trabalho de investigação.
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