24/04/2009

O ÚLTIMO DIA (era suposto) DA OUTRA SENHORA

Tenho sementes na mão
e olhos pretos no rosto,
um riso quase suposto
e uma corda na garganta,
uma terra de algodão
num esqueleto de viola,
um tiro que mata espanta
nesta guerra que se enrola

E tenho um barco amarelo
estático, sem navegar,
água fresca p'ra chorar
e uma angina de peito,
a gramática no prelo,
mais a corrida de medos,
o predicado e o sujeito
numa turma de segredos

E vejo da minha janela
a fuga do pensamento,
o tirocínio do vento
sem comissão de censura,
fica aposta numa tela
apenas a rosa mais parda,
desabrocha na usura
da velhice, da mansarda

E cais abertos à gente
e risos desirmanados,
novos e velhos cansados
em desabafos de cor,
no colapso transparente
de quem quer acreditar
que outra terra melhor
nasce para além do mar

E nuvens em bretoejas
sobrevoando os assombros,
sobem e descem nos ombros
em avalanches de espuma,
ajoelham nas igrejas,
genuflectem nos paços
e não há ordem nenhuma
que lhes causem embaraços

Mas o relógio perdido
triturando a solidão
resume num borbotão
o intervalo sonoro,
o tempo mal consumido,
a frigidez primitiva,
a tristeza que ignoro
para que o presente viva

jms

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