21/11/2019

DIOGO NOIVO

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Contas e contos das
legislativas em Espanha

O centro político ficou arrasado e a ‘ultraderecha’ está em máximos, tal como o independentismo catalão. Águas difíceis de navegar, mas o passado de Sánchez prova que o líder do PSOE tem a flexibilidade necessária para sobreviver a intempéries. Resta saber a que preço e durante quanto tempo.

Em menos de 48 horas, o Partido Socialista Obreiro Espanhol (PSOE) e o Unidas Podemos (UP), no extremo esquerdo do espectro partidário, conseguiram o que fora impossível nos seis meses anteriores: celebrar um acordo para a formação de governo. Após meio ano de acrimónias, acusações mútuas, e divergências programáticas e ideológicas tidas como insanáveis, na terça-feira os dois partidos firmaram um compromisso do qual sairá um Executivo que Pedro Sánchez, secretário-geral socialista, classificou de “rotundamente progressista”.

Na base do acordo está o sentido de urgência incutido por dois factores resultantes das eleições legislativas realizadas no último domingo. Primeiro, o retrocesso da esquerda. O conjunto dos partidos de esquerda de âmbito nacional passou de 165 deputados para 158. O PSOE foi o mais votado, mas perdeu três deputados e 750 mil votos, sendo o segundo partido que mais eleitores perdeu – apenas superado na sangria eleitoral pela hecatombe sofrida pelo Ciudadanos (Cs), do centro-direita.

O Unidas Podemos (UP) manteve-se a quarta força política nacional, apesar de ter perdido sete mandatos. O Más País (MP), um partido novo que resulta em grande medida de uma cisão no UP, obteve somente três deputados, um número aquém das expectativas. Feitas as contas, a esquerda estava a 11 deputados da maioria absoluta e no domingo ficou a 18. A manutenção de um bloqueio que obrigasse a novas eleições poderia agravar esta tendência de recuo.

O segundo factor foi o crescimento impressionante do VOX. A ultraderecha espanhola mais do que duplicou a sua presença no Congresso dos Deputados, transformando 24 mandatos em 52, assumindo assim o lugar de terceiro partido nacional. Estagnado nas sondagens até Outubro, o VOX despontou nas intenções de voto na sequência das manifestações violentas na Catalunha, conseguindo até o primeiro lugar em mais de uma centena de localidades tradicionalmente lideradas pelo PSOE.

O separatismo catalão foi o tema central da campanha e o VOX soube articular uma mensagem contundente, radical e simplista para capitalizar a insatisfação de muitos espanhóis com a permanente instabilidade catalã, de tal forma que aproximadamente 10% dos votantes da esquerda o consideram o partido mais capaz para resolver o ‘desafio separatista’. Terminados os festejos, Santiago Abascal, líder do VOX, apelidou o acordo de governo à esquerda de “Frente Popular”, uma referência clara e directa à coligação que governou Espanha no final da II República, um período que terminou com a eclosão de uma Guerra Civil atroz em 1936.

Em suma, retrocesso da esquerda e ascensão da direita radical levaram PSOE e UP a compreender que a margem de manobra era exígua, mas a urgência do momento tem pela frente um contexto adverso.

Pântano partidário
Como referido anteriormente, os signatários do acordo de governo não têm mandatos suficientes para a maioria absoluta de 176 deputados. Necessitarão por isso do apoio de uma constelação intrincada de partidos, sendo a mais provável a que inclui MP, Partido Nacionalista Basco, Partido Regionalista da Cantábria, Bloco Nacionalista Galego e Teruel Existe (movimento cidadão regional). Precisarão ainda de abstenções, nomeadamente dos independentismos catalão e basco, respectivamente Esquerda Republicana da Catalunha e E.H. Bildu. Pequenas flutuações neste arranjo podem inviabilizar a investidura do governo no parlamento à primeira volta, onde se exige a maioria absoluta, e atirar o reconhecimento do Executivo para uma segunda volta, onde bastará uma maioria simples. O terreno é pantanoso.

À instabilidade que sobrevém dos partidos listados e da débil geometria que deles resulta juntam-se as divergências entre PSOE e UP. Com excepção do aumento de alguns impostos e de reversões na lei laboral, socialistas e militantes do Podemos mantêm discordâncias de fundo em várias matérias, desde logo quanto às vias para normalizar as relações com – e dentro – da Catalunha. De resto, Pedro Sánchez passou os últimos seis meses a tecer duras críticas ao UP porque este considera os independentistas condenados “presos políticos” e porque exige a celebração de um referendo.

O acordo assinado não esclarece esta divergência, embora afirme que a solução será encontrada dentro da actual Constituição, o que sugere que Pablo Iglesias, secretário-geral do UP, cedeu e adoptou a defesa de uma Lei Fundamental que sempre desaprovou. Se assim for, a abstenção da Esquerda Republicana da Catalunha torna-se praticamente impossível.

Regresso a um passado que não volta
Fora das somas e subtracções que condicionam a estabilidade do futuro governo, as eleições do passado domingo revelaram um tímido reforço do bipartidarismo. A soma de PSOE com Partido Popular (PP) passou de 46% para 49% dos votos, o que entusiasmou vários analistas. A coligação entre os dois partidos tradicionais era possível e a melhor opção para debelar os problemas do país, em particular os que advêm da omnipresente Catalunha. Esta seria porventura a solução mais estável e funcional, mas foi vítima de circunstâncias particulares: as perdas sofridas pelo PSOE colocaram-no numa posição negocial menos favorável; o PP, que recuperou muito do terreno perdido em eleições anteriores, temia que um apoio aos socialistas facilitasse o trabalho ao VOX, que o ultrapassaria pela direita.

A entrada do UP e do Cs no hemiciclo em 2015 assinou a certidão de óbito do bipartidarismo onde PSOE e PP eram hegemónicos. Mesmo que se assista a um paulatino reforço das forças políticas tradicionais, o sistema de partidos tem hoje uma complexidade plural que torna inviável as maiorias do passado e que retira incentivos à colaboração entre socialistas e populares. Nada é para sempre, mas o regresso do bipartidarismo puro não é previsível. Contudo, os coveiros do anterior sistema de partidos não têm razões para festejar.

O rápido envelhecimento dos novos
Nas suas memórias de voluntário na Guerra Civil espanhola, o norte-americano James Neugass recorda um episódio anedótico no qual um oficial republicano pergunta aos seus homens qual a principal vantagem militar de Francisco Franco. A resposta correcta valeria uma promoção a coronel ou, caso preferissem, um volume de tabaco. Após um longo silêncio, alguém responde que a supremacia de Franco se devia ao facto não contar com intelectuais nas suas fileiras.

Se a ausência de intelectuais em combate terá sido uma vantagem para o Caudillo, para UP e Cs foi um problema. Estes dois partidos entraram na arena política em 2015 com promessas de regeneração, em parte graças ao contributo de intelectuais, académicos e profissionais, muitos dos quais sem militância partidária ou passado político, que lhes conferiram solidez ideológica e programática. 

Tinham ideias novas e estavam livres de vícios antigos. Contavam com a chamada ‘sociedade civil’. Embora com premissas e roteiros muito diferentes, foram capazes de suscitar esperança e dinamismo numa parte importante do eleitorado.

Mas desde então UP e Cs cortaram os elos com as personalidades que os fundaram para gradualmente se submeterem a cálculos partidários de curto-prazo, muito dependentes de sondagens, e, sobretudo, a lideranças ensimesmadas. Esse trajecto levou-os a bloquear a formação de um governo durante os últimos seis meses – para júbilo de Pedro Sánchez, que apostou sempre num regresso às urnas, convencido por algumas sondagens favoráveis cujos resultados não se verificaram. 

O facto é que UP e Cs foram co-responsabilizados pelo impasse que obrigou os espanhóis a votar em legislativas pela quarta vez em quatro anos.

O resultado foi um recuo significativo no passado domingo: o UP perdeu 635 mil votos, depois de ter perdido 1,3 milhões nas legislativas anteriores; já o Cs viu 2,5 milhões de eleitores fugirem de uma só vez. Albert Rivera, presidente do Cs, demitiu-se no dia seguinte às eleições e Pablo Iglesias teve de descobrir forma de içar-se ao governo.

Ao abandonarem as ideias e alinharem com a pauta da “velha política”, UP e Cs perderam parte da sua identidade. Mais importante, perderam a sua utilidade para o eleitorado.

Sánchez e o futuro político de Espanha
Consternado, o secretário-geral socialista disse há não muito tempo que a mera ideia de ter o UP no governo lhe tirava o sono. Afirmou igualmente que não há razão para que seja o partido mais votado a liderar o Executivo. Mas os tempos mudam, ainda que o tempo transcorrido seja breve, e hoje abraça Pablo Iglesias ao mesmo tempo que é intransigente na defesa do primado do partido com mais votos e mandatos. Sánchez é um personagem invulgar, quando mais não seja porque foi o primeiro Presidente de Governo a publicar as suas memórias políticas em pleno exercício de funções. E dessa singularidade depende o futuro próximo.

São 19 os partidos no parlamento. O centro do espectro político ficou arrasado por força da catástrofe eleitoral que se abateu sobre o Cs. A ultraderecha está em máximos, tal como o independentismo catalão. A formar-se, o governo será composto por dois partidos penalizados nas urnas que estarão dependentes de vontades várias, muitas vezes antagónicas. São águas difíceis de navegar, mas o passado de Sánchez prova que o líder do PSOE tem a flexibilidade necessária para sobreviver a intempéries. Resta saber a que preço e durante quanto tempo.

* Analista de Risco Político

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
15/11/19

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