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A história de um herói açoriano
O Moçambique de um jovem ex-comando açoriano que supôs que a guerra seria bem melhor do que a repulsiva juventude
De todas as mortes
que tive de amigos no ultramar, esta foi a que mais me chocou, porque
ele morreu ali irremediavelmente ao meu lado antes que chegassem os
helicópteros das evacuações.”
A
sorte protege os audazes. Ele ouviu esta frase centenas de vezes, em
Lamego e depois em Moçambique, para onde foi integrar os quadros da
quinta companhia de comandos africanos na guerra em África. Entre minas,
tiros e granadas, gritos de guerra que ziguezagueavam entre os troncos
da duvidosa mata, Manuel António Rodrigues Mota clamou por misericórdia
às árvores que escondiam brancos e negros e chorou entre o capim e, para
ele, regou-o de revolta e de saudade, de insegurança e de temor
verdadeiro com causas bem reais.
O
início da sua idade adulta chamou-se África, guerra, violência, morte,
desolação, arrependimento, saudade. Mas porque ele o quis.
Desde
os seus jovens sete anos de idade que o trabalho familiar era árduo e
cabia a todos, até à sua infantil pequenez. E a disciplina dava mãos à
severidade. Nessa época, era assim às vezes o formato da educação
familiar. Ir, nas supostas férias, férias apenas da escola, para a
piscina pública de São Pedo, em Ponta Delgada, e chegar a casa pouco
depois do meio-dia e meia, hora estipulada pela família para almoçar,
dava direito a castigo, neste caso não voltar a pôr os pés na piscina
por toda uma semana ou mais, essa que era a piscina dos namoriscos e das
paixonetas de que Manuel e todos nós tanto gostávamos.
Todo
o dia era de trabalho duro na tradicional “Loja das Chitas”, o negócio
da família, e o estudo era remetido para o lado da noite. Foi o castigo,
mais um, por o jovem haver chumbado o segundo ano liceal. O período de
descanso anual era a trabalhar, quase ininterruptamente, dezasseis horas
diárias, das oito e meia da manhã à meia-noite e meia. E perante tanta
proibição e tantos castigos, África aparentou ser a melhor opção de
vida. Manuel António decidiu dar o corpo às balas como voluntário no
exército – severidade pela severidade - e entregou-se à tropa de elite
dos combatentes maiores das forças armadas portuguesas. Passou a gritar,
com os companheiros de armas, “Mama Sumae” – aqui estamos prontos para o
sacrifício – a frase que se eternizou nos comandos, e o sacrifício foi
ilimitado.
Entre as incontáveis
vicissitudes bélicas, que todo o combatente de elite tem, Manuel
recorda-nos, sobre todas, a ocorrida num fatídico 7 de fevereiro de
1974, em que um amigo, oriundo de Castelo Branco, o Alferes Nabais, por
impiedade do destino, pois era a sua última operação em Moçambique, foi
mortalmente atingido por estilhaços de um “rocket”, quando se
encontravam próximos de uma base inimiga, acabando por lhe morrer nos
braços. Há dias incomensuravelmente desafortunados que a crueldade do
destino apronta! “De todas as mortes que tive de amigos no ultramar,
esta foi a que mais me chocou, porque ele morreu ali irremediavelmente
ao meu lado antes que chegassem os helicópteros das evacuações.” –
rememorou o ex-combatente.
A
teoria que era propagada na altura – afirma o ex-comando - era a de que
o então Chefe de Estado, Marcelo Caetano, pretendia implementar, de
modo progressivo, a autodeterminação de todas as ex-colónias
ultramarinas, mantendo-as ligadas a Portugal até que obtivessem as
condições elementares para se governarem sozinhas. Assim não aconteceu.
A
tropa, bem ou mal, fê-lo um homem, veio para a vida profissional e,
sabe-se lá se terá sido o olho do Universo sobre aquele jovem cheio de
um passado sofrido – a sorte protege os audazes - a vida sorriu-lhe
guindando-o no mundo dos negócios ao mais alto patamar, onde hoje se
encontra, sendo, como é, um dos mais bem sucedidos comerciantes dos
Açores.
Comprou
um iate, a que chamou “Oásis”, que bem merece após tão espinhosa
caminhada e com que, de quando em vez, sulca os oceanos do planeta.
Empreendeu uma viagem à volta do mundo, também ela não isenta de
perigos, mas - aí está – até no mar, a sorte protege os audazes. Em
trinta e seis mil milhas navegadas pelas sete partidas da Terra, deu a
volta ao mundo durante 20 meses, cruzou tempestades contra ventos
ciclónicos do outro lado do globo, entre as ilhas Vanuatu e a Austrália.
E, já depois da volta ao mundo, no Canal da Mancha e no Golfo da
Biscaia, enfrentou gigantes de água que se elevaram a intimidantes dez
metros de altura, e, a atrapalhar-lhe a navegação, o enrolador da genoa
(vela da proa) e o piloto automático quiseram avariar.
Contou-nos
o skipper que, onde acaba o Mar Arábico e começa o Mar vermelho, o
“Oásis” teve duas traineiras de rapina somalis em sua perseguição,
tentando a abordagem, o roubo do iate, rapto da tripulação e posterior
extorsão ao país e aos familiares. Manuel Mota e a sua equipagem, com
velas enfunadas e o motor a fundo, conseguiram escapar e sair ilesos.
Hoje, Manuel Mota conta com mais de sessenta mil milhas navegadas que
incluem viagens de 19 dias sem avistar terra.
Com
66 anos, “pai de filhos e avô de netos”, Manuel apaziguou-se com a vida
e tira partido do que ela generosamente presenteia. No sono muitas
vezes ainda desperta ao som da metralha e dos morteiros, dos impropérios
atemorizadores do inimigo e dos gritos de dor e de morte dos colegas,
comandos, companheiros da desventura, mas reconhece haver todos as
manhãs um nascer-do-sol diferente para melhor, como que uma bênção todos
os dias chegada dos céus que o felicitam por ainda fazer parte do mundo
dos vivos.
A
intenção deste texto não foi mais do que tentar dar a mão a um ser
humano que por pouco não entregou a vida à nação enrolada numa bandeira.
Manuel António – é essa a intenção - representa aqui outros muitos
milhares de homens que desceram ao inferno e voltaram, porque, enquanto
jovens, foram empurrados para uma guerra fratricida pela mão sanguinária
de um país para serem depois chamados de assassinos.
Ao
apito do navio, ainda criança, lembro-me, tão bem como se fosse hoje,
de ir a correr para o cais de Ponta Delgada ver sair o “Carvalho Araújo”
ou o “Funchal” para poder dizer adeus aos heróis, esse adeus até mais,
ou até nunca mais. E era ouvir os choros e gritos das suas mães e
sentir-lhes a aflição, porque também era filho, vindo dos mais profundos
territórios de si mesmas onde os amaram nove meses e uma vida toda. É
necessário ajudar a exorcizar os demónios que ainda hoje atormentam essa
gente que obrigatoriamente vestiu farda, que matou e viu morrer, sem
que nunca alguém lhes explicasse porquê.
IN "VISÃO"
18/06/19
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