08/03/2016

MAMI PEREIRA (MARIA MIGUEL)

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O Lago dos Inles

Pensar não serve. Mais vale sentir. O calor mole, as ventoinhas, o cheiro do caril, o monge a cuspir (ai), os sinos dos pagodes, o silêncio.

Há momentos da vida em que percebemos que estamos no sítio certo, à hora exata. A última vez que isso me aconteceu foi às sete de uma manhã escura, sentada numa barcaça comprida e chata, agarrada a uma torta cujo único ingrediente natural era açúcar, no meio de um lago de 116 Km2. E, apesar do frio e talvez por causa da overdose açucarada, dei por mim cheia de uma daquelas felicidades tão grandes, mas tão gordas, que só apetece dar saltos e bater palmas ao espetáculo que é a vida (coisa que o barqueiro não deixou, devido ao poder de flutuação duvidoso da jangada).

Bom, segundos depois aparecia o primeiro pescador-malabarista, a posar para a foto, ao pé coxinho. Numa mão um peixe a dar os últimos suspiros, na outra um vazio a querer ser acolchoado de notas. “Money-money” cantava ele na língua universal, “no-no” respondia eu a tentar uma harmonia tonal, “glu-glu” fazia o peixe no refrão final e de repente, eu percebia que, afinal, o espectáculo estava só a começar e as palmas iam ter que esperar.

Senhoras e senhores, crianças e androides, apresento-vos o Lago dos Inles (façam lá o favor de o rimar com cisnes)

Um bailado aquático do Myanmar onde, por 10 dólares a entrada e 6000 kyats a cadeira, se pode assistir ao vivo, à vida lacustre de uma data de gente. À vossa direita os jardins flutuantes de Kela, à vossa esquerda o arcaico mercado, à vossa frente, a incrível aldeia sob estacas, onde ninguém tem carta de condução mas sim de embarcação.  

 Psst, aqui atrás, o barqueiro que vai ignorar as vossas preces e vos vai obrigar, no primeiro ato, a ver como funciona o tear, no segundo ato, a aprender como a prata trabalhar e por fim, no terceiro, a escolher que tabaco fumar. Sim, é obrigatório. Não, não tens que comprar! Neste lago não há príncipes amaldiçoados, nem princesas enfeitiçadas. Há monges que já não ensinam os gatos a saltar, há mil pontes de madeira por onde atravessar e há pagodes em número suficiente para rimar. É uma daquelas coisas a não perder, mesmo que tudo já seja feito de propósito para ganhar. 

O lago é glorioso, aqui o Tchaikovsky toca motor de barco mas, depois de 4 horas, a coisa embala como qualquer valsa. Agora as tortitas (a embalagem traz 26) são perfumadas com umas tossidelas de tabaco com anis e mel, o açúcar sobe e já eu vou a remar feita Pocahontas em direção ao pôr-do-sol. 

Os pescadores olham para mim e abanam a cabeça. “Turistas! Não podemos com eles… mas já não pescamos sem eles.” Volto a Nyaungshwe, está na hora do adeus. Bebo um último chá neste café esquecido, um monge sorri com uma dentadura vermelha como o pano que o veste, e cospe à laia de um “olázinho” (nunca me hei-de habituar às cuspidelas desta gente, chiça), olho para o póster da Aung San Suu Kyi, impresso com tinteiros de esperança já gastos (mãe de um povo resignado, que já não acredita que a eleição leve à revolução), e penso neste país.

Não. Pensar não serve. Mais vale sentir. O calor mole, o som das ventoinhas, o cheiro do caril, o monge a cuspir (ai), os sinos dos pagodes, o pregão das vendedoras, o barulho dos barcos, as crianças a brincar, as buzinas, os motores, os gritos, os risos, os sorrisos e, de repente…o silêncio! Cai o pano. … Palmas. 

* Mestre em História de Arte

IN "DINHEIRO VIVO"
03/03/16


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