O Lago dos Inles
Pensar não serve. Mais vale sentir. O calor mole, as ventoinhas, o cheiro do caril, o monge a cuspir (ai), os sinos dos pagodes, o silêncio.
Há momentos da vida em que percebemos que
estamos no sítio certo, à hora exata. A última vez que isso me aconteceu
foi às sete de uma manhã escura, sentada numa barcaça comprida e chata,
agarrada a uma torta cujo único ingrediente natural era açúcar, no meio
de um lago de 116 Km2.
E, apesar do frio e talvez por causa da overdose açucarada, dei por mim
cheia de uma daquelas felicidades tão grandes, mas tão gordas, que só
apetece dar saltos e bater palmas ao espetáculo que é a vida (coisa que o
barqueiro não deixou, devido ao poder de flutuação duvidoso da
jangada).
Bom, segundos depois aparecia o primeiro
pescador-malabarista, a posar para a foto, ao pé coxinho. Numa mão um
peixe a dar os últimos suspiros, na outra um vazio a querer ser
acolchoado de notas. “Money-money” cantava ele na língua universal,
“no-no” respondia eu a tentar uma harmonia tonal, “glu-glu” fazia o
peixe no refrão final e de repente, eu percebia que, afinal, o
espectáculo estava só a começar e as palmas iam ter que esperar.
Senhoras e senhores, crianças e androides,
apresento-vos o Lago dos Inles (façam lá o favor de o rimar com cisnes)
Um bailado aquático do Myanmar onde, por 10
dólares a entrada e 6000 kyats a cadeira, se pode assistir ao vivo, à
vida lacustre de uma data de gente. À vossa direita os jardins
flutuantes de Kela, à vossa esquerda o arcaico mercado, à vossa frente, a
incrível aldeia sob estacas, onde ninguém tem carta de condução mas sim
de embarcação.
Psst, aqui atrás, o barqueiro que vai ignorar as vossas preces e vos vai obrigar, no primeiro ato, a ver como funciona o tear, no segundo ato, a aprender como a prata trabalhar e por fim, no terceiro, a escolher que tabaco fumar. Sim, é obrigatório. Não, não tens que comprar! Neste lago não há príncipes amaldiçoados, nem princesas enfeitiçadas. Há monges que já não ensinam os gatos a saltar, há mil pontes de madeira por onde atravessar e há pagodes em número suficiente para rimar. É uma daquelas coisas a não perder, mesmo que tudo já seja feito de propósito para ganhar.
O lago é glorioso, aqui o Tchaikovsky toca motor de barco mas, depois de 4 horas, a coisa embala como qualquer valsa. Agora as tortitas (a embalagem traz 26) são perfumadas com umas tossidelas de tabaco com anis e mel, o açúcar sobe e já eu vou a remar feita Pocahontas em direção ao pôr-do-sol.
Os pescadores olham para mim e abanam a cabeça. “Turistas! Não podemos com eles… mas já não pescamos sem eles.” Volto a Nyaungshwe, está na hora do adeus. Bebo um último chá neste café esquecido, um monge sorri com uma dentadura vermelha como o pano que o veste, e cospe à laia de um “olázinho” (nunca me hei-de habituar às cuspidelas desta gente, chiça), olho para o póster da Aung San Suu Kyi, impresso com tinteiros de esperança já gastos (mãe de um povo resignado, que já não acredita que a eleição leve à revolução), e penso neste país.
Psst, aqui atrás, o barqueiro que vai ignorar as vossas preces e vos vai obrigar, no primeiro ato, a ver como funciona o tear, no segundo ato, a aprender como a prata trabalhar e por fim, no terceiro, a escolher que tabaco fumar. Sim, é obrigatório. Não, não tens que comprar! Neste lago não há príncipes amaldiçoados, nem princesas enfeitiçadas. Há monges que já não ensinam os gatos a saltar, há mil pontes de madeira por onde atravessar e há pagodes em número suficiente para rimar. É uma daquelas coisas a não perder, mesmo que tudo já seja feito de propósito para ganhar.
O lago é glorioso, aqui o Tchaikovsky toca motor de barco mas, depois de 4 horas, a coisa embala como qualquer valsa. Agora as tortitas (a embalagem traz 26) são perfumadas com umas tossidelas de tabaco com anis e mel, o açúcar sobe e já eu vou a remar feita Pocahontas em direção ao pôr-do-sol.
Os pescadores olham para mim e abanam a cabeça. “Turistas! Não podemos com eles… mas já não pescamos sem eles.” Volto a Nyaungshwe, está na hora do adeus. Bebo um último chá neste café esquecido, um monge sorri com uma dentadura vermelha como o pano que o veste, e cospe à laia de um “olázinho” (nunca me hei-de habituar às cuspidelas desta gente, chiça), olho para o póster da Aung San Suu Kyi, impresso com tinteiros de esperança já gastos (mãe de um povo resignado, que já não acredita que a eleição leve à revolução), e penso neste país.
Não. Pensar não serve. Mais vale sentir. O
calor mole, o som das ventoinhas, o cheiro do caril, o monge a cuspir
(ai), os sinos dos pagodes, o pregão das vendedoras, o barulho dos
barcos, as crianças a brincar, as buzinas, os motores, os gritos, os
risos, os sorrisos e, de repente…o silêncio!
Cai o pano.
…
Palmas.
* Mestre em História de Arte
IN "DINHEIRO VIVO"
03/03/16
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