HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Mónica Bettencourt-Dias
"Há dogmas da biologia
a ser quebrados a todo o tempo"
É a nova
diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência e há poucas semanas publicou
um artigo na Nature com uma descoberta que revela um calcanhar de
Aquiles de alguns cancros. O que a move? A curiosidade de saber como o
nosso corpo funciona.
"Na maioria
dos subtipos agressivos de cancro, aumenta o número e o tamanho dos
centríolos".
.
Esta é talvez a frase chave da investigação da equipa liderada por esta cientista que aos 44 anos se tornou diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência [IGC]. Mas o que quer dizer, ou ainda mais difícil, para que interessa essa descoberta? Ela, que acredita que a ciência pode transformar o mundo para melhor, responde aqui a essa pergunta. Ela, que fez da vida uma constante procura de respostas a novas perguntas. Formada em Bioquímica na Universidade de Lisboa, doutorou-se em biologia celular no University College de Londres no início do Programa Gulbenkian de Doutoramento. Em Cambridge, fez um pós-doc sobre o tema que continua a investigar: as células do corpo humano.
.
Esta é talvez a frase chave da investigação da equipa liderada por esta cientista que aos 44 anos se tornou diretora do Instituto Gulbenkian de Ciência [IGC]. Mas o que quer dizer, ou ainda mais difícil, para que interessa essa descoberta? Ela, que acredita que a ciência pode transformar o mundo para melhor, responde aqui a essa pergunta. Ela, que fez da vida uma constante procura de respostas a novas perguntas. Formada em Bioquímica na Universidade de Lisboa, doutorou-se em biologia celular no University College de Londres no início do Programa Gulbenkian de Doutoramento. Em Cambridge, fez um pós-doc sobre o tema que continua a investigar: as células do corpo humano.
Fazem no IGC investigação fundamental que tem uma utilidade indireta no nosso dia-a-dia?
O nosso trabalho foca-se nas estruturas chamadas centríolos e
centrossomas. É uma biologia fundamental e associada à definição de vida
- o que são as nossas células e como são feitas. Mas pode ter aplicação
a longo prazo e mostra a importância da biologia fundamental. Há duas
semanas saiu um estudo muito importante em que se verificou de onde
vieram os fármacos verdadeiramente importantes no combate ao cancro e no
combate à hipertensão. Vieram de um estudo direcionado para descobrir
esse fármaco ou de descobertas que surgiram da curiosidade?
E então?
Oito em nove fármacos vêm de descobertas que surgiram da curiosidade, e
muitos deles não de uma descoberta única. Por exemplo, o estudo de como a
tensão arterial é regulada e o tipo de substâncias químicas a ela
associadas começou antes de 1950, ano em que se descobriu que a
hipertensão não é boa para nós. Havia imensas descobertas originadas
pela curiosidade relacionadas com muitos dos processos biológicos que
hoje sabemos que são maus. Nós queremos saber como é que as coisas
funcionam.
É isso que está na base da opção pela investigação? Não tinha pensado em ir para Astrofísica?
Isso foi quando pequenina. Antes da escolha da universidade estive entre
a Medicina e a Bioquímica, mas sempre vocacionada para a investigação.
O essencial do vosso trabalho são as perguntas?
Exatamente. Se falar com qualquer investigador, ele dirá que a
propriedade mais importante é a curiosidade. Somos todos curiosos e
queremos perceber como as coisas funcionam. Obviamente, somos
diferentes, em diferentes níveis e com diferentes assuntos. No caso da
minha equipa no laboratório, queremos saber como o nosso corpo funciona.
No IGC também há muita gente interessada em perceber como o nosso corpo
interage com o ambiente, seja com o físico-químico, com os nossos
nutrientes, seja com o biológico (por exemplo, como interagimos com
bactérias e vírus), seja com o ambiente social - como interagimos com o stress, ou o que o stress
faz no nosso corpo. É esta curiosidade que nos move e que leva a
descobertas. No IGC temos vários casos em que se consegue perceber que
aquilo pode ser manipulado, para curar uma doença ou para nos sentirmos
melhor.
Isso implica a capacidade de não desistir perante o erro?
Exatamente. Mas acho que isso se aplica a todas as áreas da vida. É
muito bom não ter medo de errar. Obviamente, não podemos fazer erros tão
grandes que nos custem a vida ou coisa do género, temos de ter senso
comum. Mas não ter medo de errar é crítico. É crítico deixarmos as
crianças errar, para não terem medo de errar. Só assim exploramos
caminhos novos e não temos medo de quebrar dogmas. No IGC tentamos
promover uma ciência disruptiva, tentar caminhos novos e áreas de
investigação novas, trilhar esse desconhecido. É o desconhecido que nos
pode dar novas avenidas.
No caso deste seu último artigo publicado na Nature Communications, já em 2018, que aplicação prática pode ter? Está a falar de cancros de que ouvimos falar todos os dias, muito comuns, como o cancro da mama e do cólon?
Estudámos em cooperação com a equipa da Joana Paredes do Ipatimup -
agora I3S. Olhámos para o cancro da mama e nomeadamente para um dos
subtipos mais agressivos, o triplo negativo, que tem um diagnóstico
muito pior. Percebemos que as estruturas que estudamos dentro das
células estão mais alteradas aí. Onde é que isto pode ser aplicado?
Neste momento ainda não pode, mas começámos a olhar para isso. Ao
descobrir diferenças entre as células do cancro e as células normais,
descobrimos algo que pode ser uma fraqueza do cancro que pode ser
atacada. Por isso lhe chamamos o Calcanhar de Aquiles do cancro.
Queremos perceber como podemos atacar as células do cancro e não as
normais, para evitar os efeitos secundários das terapias. Queremos
perceber como esse cancro é diferente, para chegar ao diagnóstico.
Sabendo que certos cancros com piores prognósticos têm caraterísticas
próprias, podemos ir à procura dessas caraterísticas. É isso que estamos
a fazer agora, aproveitando o conhecimento destas estruturas que são
importantes para a multiplicação das células, para a maneira como se
movem, para a sua sinalização, como comunicam. Podemos tentar olhar para
o diagnóstico e para a terapia.
E isso vai passar-se na mesma equipa do IGC e com as mesmas colaborações que tinham?
Temos uma colaboração que é crítica nesta área, com o Nuno Morais do
Instituto de Medicina Molecular [IMM], em Lisboa. Ele é bio-informático e
a equipa dele tem estado a olhar para marcadores que permitam
diagnosticar estas estruturas de uma forma simples, para perceber se
estão alteradas. E continuamos com a Joana Paredes, que nos permite
olhar para os tecidos e perceber se isso é verdade. Com ele é uma coisa
de larga escala para tentar apanhar sinais, com ela vamos verificar
esses sinais.
Não é possível fazer ciência sozinho?
Cada vez mais a ciência pede diferentes tecnologias, diferentes abordagens e maneiras de olhar para o problema.
Nem todos os institutos têm de ter tudo?
É verdade, e isso é uma mais-valia do momento que vivemos em Portugal. A
ciência tem amadurecido bastante e temos pessoas muito boas em
diferentes sítios. Temos de aproveitar porque, apesar de ser muito fácil
fazer skypes e colaborar pela internet com pessoas em todo o mundo, é
simpático podermos encontrar-nos com a outra pessoa e discutir mais
informalmente. Temos de tentar aproveitar essas valências e essas
colaborações dentro de Portugal.
Dentro do próprio IGC também funciona esse diálogo das equipas? Têm sítios próprios para isso ou é nos corredores perto da máquina do café?
A pluralidade que temos dentro do Instituto e que defendemos muito é uma
das nossas mais-valias. É uma pluralidade que foi trazida pelo
professor António Coutinho, há 20 anos, e que foi também defendida pelo
Jonathan Howard, que lhe sucedeu na direção. É da conversa de pessoas
que trabalham em coisas diferentes que surgem ideias verdadeiramente
novas. Essas conversas surgem nos seminários a que é suposto toda a
gente ir, onde nos ouvimos uns aos outros.
E vão?
Vamos. E discutimos quando não vão. E há as refeições na cantina, onde
temos umas mesas muito longas, e há o pátio fantástico onde aproveitamos
para almoçar e as pessoas sentam-se aleatoriamente umas com as outras.
Esta discussão é muito importante. Há também o treino. No nosso programa
de doutoramento, os estudantes têm seis meses de aulas onde são
expostos a todos os chefes de laboratório do Instituto, à investigação
que se faz aqui. Eles próprios também estabelecem laços entre eles e
muitas colaborações surgem através dos estudantes. O nosso espaço é todo
aberto e isso permite que as pessoas se encontrem e peçam aos outros
ferramentas para utilizar nos seus estudos. Tudo no IGC está virado para
esta pluralidade e para aproveitá-la ao máximo.
Quando quis ser investigadora, o que imaginava? As coisas mudaram radicalmente em Portugal desde esse tempo.
Na altura, apercebi-me de que apesar de haver alguma boa investigação em
Portugal, ainda havia mais oportunidades lá fora. Daí ter decidido
partir, depois de ter entrado no Programa Gulbenkian de Doutoramento,
uma inovação dos professores António Coutinho e Alexandre Quintanilha.
Era um programa em que tínhamos aulas cá com professores vindos de todo o
mundo e que depois nos permitia ir para qualquer parte. Permitia-nos
ser expostos a áreas que não existiam em Portugal e começar a pensar em
investigação ao mais alto nível. Sempre pensei que ia continuar a fazer
investigação. Também pensei que poderia gostar de dar aulas.
E dá aulas?
Não são muitas mas está bem para a carga que tenho, com tudo o resto que
faço. Damos aulas dentro do programa de doutoramento e somos convidados
para dar uma ou outra aula fora.
Os laboratórios são muito diferentes, com as novas tecnologias?
É impressionante a rapidez com que a Biologia tem avançado a nível
conceptual, coisas que eram dogmas e hoje sabemos que não são verdade.
Há dogmas a serem quebrados a todo o tempo. Mas há também a rapidez com
que conseguimos fazer investigação. Coisas que havia um estudante que
demorava o doutoramento inteiro a fazer hoje manda-se para uma empresa e
estão feitas numa semana. Isso estimula imenso, porque a pessoa tem uma
pergunta e a pergunta pode ser respondida depressa.
Sabendo sempre que é lento o processo científico?
O processo é lento mas quando comparamos com o passado é muito mais
rápido. Somos impacientes e queremos uma resposta ainda mais rápida.
Não estamos nos tempos da Madame Curie. Quando era pequena lia livros sobre os grandes cientistas?
Sim, e não só quando era pequena. Gosto muito de biografias científicas,
acho piada ver como as pessoas tomaram as decisões, como resolviam os
problemas, quais eram as perguntas a que tentavam responder, como
interagiam com as outras pessoas.
No doutoramento em 2001, estudou a regeneração de células do coração das salamandras. Porquê a salamandra?
Nós somos constituídos por 100 triliões de células, começamos todos com
uma célula que se multiplica e dá origem a 100 triliões de células. Se
nós somos uma casa, a célula é o tijolo, é a unidade básica da vida. Eu
queria perceber como as células decidem se se vão multiplicar ou não.
Dentro do nosso corpo temos células, como os neurónios ou mesmo alguns
músculos, que já não se multiplicam, enquanto outras têm de se
multiplicar, como as que dão origem à pele e as do sistema reprodutivo.
Como é feita esta decisão? Dei com um investigador [Jeremy Brockes] que
se ocupava deste problema do ponto de vista da regeneração. Ele não
procurava perceber como num embrião o músculo decide "as minhas células
não se multiplicam". Era o contrário: num organismo adulto, como é que
as células se mantêm sem se multiplicar ou como podem multiplicar-se e
regenerar. A salamandra é um organismo fantástico, regenera o olho, os
membros - se cortarem uma patinha ela regenera-a exatamente igual, com
as mesmas manchas, e regenera também parte do coração. Fiquei
interessada em estudar a parte do coração, foi o que fiz no
doutoramento.
Chegou a uma conclusão?
O processo de decidir que se vai multiplicar outra vez, como ela faz
quando tem uma ferida no coração, é semelhante às decisões das nossas
células. A maneira como isso é feito ainda existe nas nossas, só que é
regulado de uma forma diferente, o que pode ser explorado para tentar a
regeneração.
Fala das células como se elas tivessem uma inteligência.
Pois, tenho de ter sempre muito cuidado. É uma simplificação, é mais
fácil relacionarmo-nos com o ouvinte utilizando conceitos que temos no
nosso dia a dia. As células não tomam a decisão. Há uma decisão mas não
há um cérebro que toma uma decisão.
Estão programadas para isso?
Estão
programadas em parte para isso, exatamente. Mas nós tendemos a
simplificar para ser mais fácil, intuitivamente, as pessoas perceberem.
Que planos tem para o IGC?
O IGC já teve várias vidas, e a última foi começada pelo professor
António Coutinho que renovou e mudou bastante a sua filosofia,
continuada pelo Jonathan Howard e com a qual eu e muitos dos meus
colegas no IGC nos sentimos identificados. Queremos fazer esta ciência
plural, em que pessoas diversas que pensam de maneiras diferentes estão
no mesmo sítio e falam, para fazermos ciência disruptiva e inovadora.
Para nós é muito importante o treino de diferentes gerações, e o IGC tem
uma tradição enorme nisso, já treinou mais de 400 estudantes de
doutoramento. Se olharmos para os que foram treinados nestes 15 anos, 60
por cento são chefes de laboratório, é uma taxa muito boa.
Uma produção muito importante.
Também incubámos outros institutos, como o Centro de Doenças Crónicas
[CEDOC], a Fundação Champalimaud. Imensos diretores de institutos - a
diretora de investigação da Fundação Champalimaud, Marta Moita, a
diretora do IMM, Maria Manuel Mota, o diretor do CEDOC, António Jacinto,
diretores de departamentos de universidades como por exemplo no
Algarve, o diretor do IBILI [Instituto Biomédico de Investigação da Luz e
da Imagem] em Coimbra. Muitos passaram no programa de doutoramento ou
foram incubados como chefes de laboratório no IGC. Em 88 grupos que
incubámos, 53 saíram para outros sítios. Estamos a passar esta maneira
de fazer ciência a outros sítios e a criar uma rede de contactos que
pode fazer muito mais pela ciência. E valorizamos muito a ligação à
sociedade. Desde cedo, o professor António Coutinho esforçou-se por
fazer atividades de comunicação com a sociedade.
Incluindo o Dia Aberto?
Com quase duas mil pessoas a vir ao IGC! Temos outras atividades, por
exemplo os festivais de música como o Nos Alive onde temos uma tenda. É
uma simbiose interessante porque ganhamos com isso algumas bolsas de
investigação. Há várias atividades engraçadas. Queremos capitalizar
sobre estas valências que criámos no passado e fazer uma ciência ainda
mais disruptiva e mais internacional. É muito importante que o IGC se
torne uma instituição, em parceria com outras instituições nacionais e
internacionais, ainda mais conhecida internacionalmente, para
conseguirmos atrair pessoas ainda melhores e também para que empresas
internacionais vejam que há ciência muito boa a ser feita em Portugal.
Isso para nós é crítico. Queremos também inovar no treino de pessoas,
não só ao nível do programa de doutoramento mas a diferentes níveis.
Estamos a trabalhar com os pós-doc e com os chefes de laboratório para
pensar como dar mais capacidades às pessoas para se tornarem ainda
melhores no que fazem. A nível da sociedade também queremos inovar.
O que podemos esperar daí? Estou a perguntar isto porque começou a rir-se.
Nós, os cientistas em geral, somos muito defensores de que a ciência
pode mudar o mundo e transformar a sociedade para melhor e eu acredito
mesmo nisso. O mundo está cheio de ciência e nós temos de tomar decisões
no dia a dia baseados na ciência - é importante que saibamos tomá-las. E
também ser crítico e não ter medo de fazer erros e de pensar que o que
nos estão a dizer pode estar errado. Pôr em causa, pensar de uma forma
original para gerir a nossa vida, o que é cada vez mais importante com
toda a informação ou não informação que recebemos. A ciência e a maneira
como é feita trazem valores muito importantes, como o valor da
cooperação, o valor de aceitar a crítica e estar aberto a estar errado, o
valor da tolerância. A ciência é internacional e é permeável a todas as
ideias. Esses são valores que podemos transmitir através de atividades
giras de ciência na escola e que depois passam para a vida em geral.
Vão muito às escolas?
O IGC vai bastante à escola. Gostaríamos de começar a fazer coisas que
depois possam ser copiadas e levadas a um nível maior, não só na escola
mas como exemplo para outras instituições. Queremos que a nossa relação
com a sociedade seja feita de uma forma mais científica: pôr hipóteses,
testar novas formas de fazer, avaliá-las e depois transmitir ao mundo.
Quando vai a uma escola, as perguntas das crianças são surpreendentes?
Lembro-me de imediato de uma situação que por acaso não foi no IGC. No
Dia da Mãe, na escola da minha filha de seis anos houve uma sessão em
que os miúdos falaram com um astrónomo por skype e cada um tinha de
fazer uma pergunta. Eu não sabia a resposta a muitas das perguntas.
Somos sempre surpreendidos e de uma forma gira que nos faz mesmo pensar.
Há coisas que tomamos como certas e depois quando temos de pensar
nelas, porque uma criança nos pergunta, apercebemo-nos da nossa
ignorância. Há perguntas muito engraçadas para serem respondidas.
A sua filha também já lhe fez perguntas dessas?
Ah, está sempre a fazer perguntas daquelas a que uma pessoa não sabe o
que há de responder, tenta responder da melhor forma possível para a
idade.
O trabalho de direção vai afastá-la do laboratório?
Foi tudo rápido, tem sido complicado gerir, mas na semana passada
submetemos dois artigos. É difícil mas é possível e temos vários
exemplos em Portugal, como a Maria Mota, e internacionalmente. É uma
questão de coordenação e de ter a equipa certa. Tenho fantásticos
elementos da nossa equipa e estamos a tentar recrutar mais uma pessoa. É
muito importante a divisão de tarefas e ter uma equipa plural. Temos um
gestor na direção, para simplificar a gestão e ter tempo para as outras
coisas. O diretor de um instituto deve dar o exemplo e fazer boa
investigação, recrutar bolsas internacionais e por aí fora.
Uma parte do trabalho à frente de um laboratório é conseguir fundos. É preciso preparar projetos, candidaturas?
Sem dúvida. Por isso falava de treinarmos bem os nossos investigadores.
Quando chegamos a chefes de laboratório as ferramentas que temos de ter
são completamente diferentes da investigação. Um laboratório é como se
fosse uma mini empresa, com gestão de pessoas e de personalidades muito
diferentes. Em sítios internacionais como o IGC temos culturas muito
diferentes.
Quantas nacionalidades têm no IGC?
Trinta e tal. No nosso programa de doutoramento, no grupo que entrou no
ano passado temos uma rapariga do México, outra do Equador, outra da
Síria, outra da Nigéria, outra da Croácia, só para dar um exemplo. Temos
pessoas vindas de todo o sítio e com culturas muito diferentes, temos
de saber geri-las bem e motivá-las para o que estão a fazer. Temos de
saber procurar financiamento e para isso outra valência importante são
as infraestruturas que damos. Queremos melhorar ainda mais no IGC, não
só as infraestruturas dos microscópios, as infraestruturas científicas,
mas também as infraestruturas para ir buscar financiamento, dar ajuda
nisso. E também infraestruturas de comunicação. Temos serviços que
ajudam os investigadores e que se forem muito bons simplificam as suas
vidas, para poderem comunicar com o mundo em geral e com os seus pares.
Quais foram os momentos mais emocionantes da sua vida de cientista?
Há vários, mas há dois de que me lembro muito bem e têm a ver também com
a partilha da descoberta com outras pessoas. Não sou nada
individualista e gosto muito de trabalhar em grupo e da descoberta em
grupo. É um prazer partilhado que é brutal, uma pessoa ter aquela
informação pela primeira vez no mundo: somos os primeiros a saber e vem
da nossa hipótese. Uma delas foi quando estava a fazer o
pós-doutoramento em Cambridge. O meu orientador [David Glover] foi muito
simpático e deixou-me ter outras pessoas a trabalhar comigo, tinha uma
mini equipa. Tive uma estudante de doutoramento que começou lá comigo e
veio quando comecei o meu laboratório em Portugal, a Ana Rodrigues
Martins. Estávamos a tentar responder a uma pergunta: como são formadas
estas estruturas que estudamos? Ver no microscópio as estruturas a ser
formadas foi fantástico, surpreendente. Depois, no meu próprio
laboratório, num artigo que saiu há dois anos na Science - o outro
também tinha saído na Science em 2007 - com uma pós-doc, a Ana Marques,
tínhamos feito uma pergunta: como são mantidas estas estruturas?
Pensava-se que eram tão rijas que se mantinham sempre. Pusemos a
hipótese de conseguirem partir-se, nomeadamente nos ovócitos das
mulheres, em que há um mecanismo que está envolvido em mantê-las ou não.
Quando ela foi testar ao microscópio e vimos que estávamos certas - foi
aquela imagem, bastava ver a imagem e sabíamos o resultado! Tão
inesperado, ou esperado, de acordo com a nossa hipótese...
Colocou hipóteses que não se confirmaram?
Sim, e podem ser mais interessantes. Quando pomos uma hipótese e ela não
se verifica, temos que pensar porque pode estar a dizer-nos que estamos
errados mas que há qualquer coisa muito mais engraçada ali por trás.
Temos de saber distinguir se é um erro experimental ou se é um erro da
biologia, o que é muito mais interessante. Estamos a pensar de forma
errada e temos de repensar tudo o que estávamos a fazer.
Isso é bom, não é?
É ótimo. Claro que é frustrante para as pessoas que estão a fazer a
experiência porque às vezes querem acabar o doutoramento e quando veem
aquele resultado ficam mais em baixo. Aí é importante o treino dos
chefes de laboratório para lidarem com as pessoas e motivá-las, dizer
"pode ser mais giro, se fizermos isto ou aquilo conseguimos ter um
mecanismo ainda mais novo".
Que perguntas tem agora para fazer à ciência?
Nós estamos muito interessados em como é que estas estruturas são mantidas ou não, somos fascinados por isso.
Nós é quem?
Eu
e as pessoas que estão no meu laboratório a trabalhar neste problema
comigo. Foi uma descoberta realmente nova e que pode ter repercussões
muito grandes na maneira como as nossas células se multiplicam ou não.
Obviamente é importante em cancro e na regeneração. Continuamos a
investigar este processo, ainda só abrimos uma garrafa e agora vamos
espreitar lá para dentro. Tentamos perceber o que se passa para
conseguir manipular o procedimento, se quisermos manipular. Há outro
tema que nos interessa. Até há pouco tempo simplificava-se os conceitos e
dizia-se que a multiplicação das células é igual em todas. Mas dentro
do nosso corpo as células são muito diferentes umas das outras e os
processos podem ser muito diferentes. Estamos muito interessados em
perceber como essa diversidade é gerada.
É extraordinário que o nosso corpo tenha essa complexidade toda.
Exatamente. Isso é crítico quando temos certas doenças associadas às
estruturas com que trabalhamos. Dependendo da maneira como se modificam,
a pessoa pode ser cega ou ter rins com cistos, ou ter alterações da
simetria do corpo, o coração do lado errado. Isto depende de certos
mecanismos. Há coisas que achamos que são iguais em todos os nossos
tecidos e são diferentes, e dependendo da maneira como se alteram podem
resultar em doenças muito diferentes.
* Ciência é humanidade.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário