Conflito ou
convergência?
A história da relação entre muçulmanos e cristãos teve momentos de convergência e de conflitos. Mas também, felizmente, ciclos positivos que podemos repetir.
A
história da relação entre muçulmanos e cristãos teve momentos de
convergência e de conflitos. Estudiosos da cristologia muçulmana
encontram no Alcorão alguns exemplos que consubstanciam diferenças de
raiz teológica. O Alcorão traz inúmeras referências a Jesus, a Maria e à
mãe de Maria que não vão ao encontro de alguns dogmas escatológicos
cristãos.
Embora haja aspetos consensuais no Judaísmo,
Cristianismo e Islão, não podemos escamotear aspetos que provocaram
ruturas e divergências de fundo entre estas comunidades de fé.
Em
relação ao Cristianismo, uma dessas divergências tem a ver com a
questão da crucificação de Jesus e as respetivas leituras do Alcorão
feitas tanto pelos exegetas muçulmanos como pelos próprios cristãos. Na
opinião de alguns intérpretes, o Alcorão afirma que a crucificação não
aconteceu.
E negar a crucificação é negar o Cristianismo.
Ora
vejamos: E eles disseram (vangloriando-se),"nós matámos o Messias,
Jesus, o Filho de Maria, O Mensageiro de Deus" mas eles não o mataram,
nem o crucificaram, aquilo foi apenas para que parecesse que tinha
acontecido; e aos que estão cheios de dúvidas, sem conhecimento, mas
apenas seguindo uma conjetura, fiquem sabendo que não o mataram.
Atentai, Deus elevou-o até Si, e Deus é Todo-Poderoso, Sábio (Alcorão
4:155-157) Aparentemente, este é o versículo que criou o grande cisma
entre cristãos e muçulmanos. Como poderia um evento histórico e
conhecido ser negado pelo Alcorão? Para os cristãos, uma revelação que
negue a história só poderia ser uma invenção.
O problema é o
mesmo de sempre. A descontextualização do versículo e a interpretação
literal, servindo as agendas dos intérpretes. Por exemplo, a expressão
que surge entre aspas, sugere que Deus pede a morte de Jesus; todavia,
nos versos anteriores, e face a tudo o que se diz de Jesus no Alcorão,
percebemos que em resultado dessa expressão, Deus afirma que os
opositores estariam enganados, porque efetivamente, Deus já o tinha
salvo. Para corroborar esta tese, Todd Lawson, na obra The Crucifixion
and the Qur'an explica que "para além de uma deturpação dos próprios
estudiosos do Alcorão, a afirmação de que os muçulmanos não aceitam a
crucificação, veio do Padre da Igreja Cristã, João de Damasco, no século
VIII". Lawson diz que "a interpretação de João de Damasco é
injustificada. O que o Alcorão diz é que os judeus não crucificaram
Jesus, e isso é obviamente diferente de dizer que Jesus não foi
crucificado. O ponto é: tanto João de Damasco como muitos exegetas do
Alcorão, mas não o Alcorão em si, negam a crucificação. Assim, a exegese
do verso 4:157 não é uniforme; as interpretações vão desde a recusa
direta da crucificação de Jesus até à afirmação simples da historicidade
do evento".
Isto lembra a tese da galinha e do ovo: qual veio primeiro.
Ou
seja, não se pode ter a certeza de que os conflitos resultam em função
das divergências teológicas baseadas nas escrituras, ou se elas são
usadas como ideologias para legitimar outro tipo de poderes.
A
verdade é que há registos históricos de salutar convivência e tolerância
entre cristãos e muçulmanos. Exemplos profícuos deste tipo de
relacionamento decorreram no período que Joel Kraemer definiu como O
Humanismo no Renascimento do Islão, em finais do século X. Aí governavam
as dinastias buyidas, samanidas, safaridas, fatimidas, hamdanitas, e
omíadas na Península Ibérica. Curiosamente todas xiitas e que
cultivaram, juntamente com as minorias cristãs e judaicas, um intenso
movimento de mudança cultural e expansão do conhecimento. Kraemer sugere
que o papel destas minorias foi determinante para a inovação, pois
normalmente a estratégia integrativa das minorias é não só dominar o
conhecimento da maioria mas ultrapassar a cultura dominante. No que
respeita à liberdade de expressão, Kraemer refere relatos de que o rei
buyida não apenas revigorou estas minorias, como encorajou-as nos seus
empreendimentos, e deu total liberdade para que promulgassem as suas
profecias, sem necessidade de dissimular; desde que ninguém forçasse o
outro a algum tipo de fanatismo religioso.
A História tem, felizmente, ciclos positivos que podemos repetir.
* Faranaz Keshavjee nasceu a 11 de Janeiro de 1968, em Moçambique, na então capital Lourenço Marques e chegou como “retornada” a Portugal, em Setembro de 1974, aterrando no Bairro Alto, bem no meio das ruas estreitas e carismáticas por onde passavam o fado, as varinas e os travestis.
O fascínio e o gosto pelo estudo e investigação nas ciências sociais e humanas levaram-na a estudar primeiro para uma licenciatura em Antropologia Social e depois um Mestrado em Psicologia Social no ISCTE, seguindo depois para o Reino Unido onde se especializou em Estudos Islâmicos e Humanidades, no Institute of Ismaili Studies em Londres, e prosseguindo a sua investigação para um doutoramento na Universidade de Cambridge.
As questões de género e identidades sociais dos muçulmanos em Portugal fizeram parte dos seus trabalhos académicos. Quando regressou a Portugal trabalhou no Centro Ismaili como consultora académica, e deu aulas nas Universidade Católica, Lusófona e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
Traduziu obras académicas sobre o Islão, foi conferencista em debates nacionais e internacionais, cronista no Público e bloguer no Expresso.
O 11 de Setembro foi a data a partir da qual passou a ser referência incontornável nas discussões, entrevistas e publicações sempre que se tratasse de questões ligadas ao Islão e às sociedades muçulmanas.
IN "VISÃO"
30/01/16
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