08/10/2024

MARGARIDA DAVIM

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Os suspeitos
            do costume

     Instilar ódio aos imigrantes é tão fácil como fazer arder um eucaliptal depois de o regar com gasolina. O combustível está lá quando o salário não chega para as contas, quando não há vaga na creche, quando a consulta tarda no hospital, quando a renda da casa sobe. Isso é que o faz arder. Mas o que arde está plantado bem fundo em nós: a ideia de que as pessoas não são todas iguais e que a humanidade se mede em tons de pele e, já agora, em euros

Atiro-me para dentro do carro e ainda mal apertei o cinto e a conversa já começa a dar os mesmos passos na direção de sempre. Três curvas depois, num semáforo, o motorista desabafa sobre “a falta de controlo” de quem vem para cá trabalhar em Ubers e Bolts. “E isto o problema é que estão dispostos a trabalhar por qualquer coisa”. Tento uma guinada e falo sobre a exploração a que estão sujeitos, a forma como saíram do seu país e agora dormem em camaratas ou nas malas dos automóveis que conduzem. Recebo um aceno ligeiro, um assentimento entredentes, enquanto me espreita pelo retrovisor. E mais algumas queixas. Falar de imigrantes como explorados raramente comove os motoristas que me conduzem.

O ginásio que frequento, no centro de Lisboa, no rés-do-chão de uma torre de apartamentos de luxo, está cheio de imigrantes. São quase todos loiros, quase todos altos, quase todos de olhos claros. Todos ricos. E, por isso, não se chamam imigrantes. São residentes não habituais ou nómadas digitais

Não ocorre a ninguém apontá-los a dedo ou mandá-los para terra deles, acusando-os de viverem à custa do Estado. Mesmo que o Tribunal de Contas acabe de publicar um relatório no qual revela que os benefícios fiscais concedidos a residentes não habituais representam “62,8% da despesa fiscal em IRS”. Ou seja, o regime que permite a estas pessoas pagarem apenas 20% de taxa de IRS durante dez anos custou-nos a todos 1,3 mil milhões de euros só em 2023. São menos 1,3 mil milhões para centros de saúde, hospitais, escolas e creches.

Os motoristas de turbante e os brasileiros que trabalham no restaurante e as africanas que acordam de madrugada para limpar casas e escritórios, pelo contrário, deram lucro. Segundo o Público, em 2023, as contribuições dos imigrantes para a Segurança Social “foram as mais elevadas de sempre e representaram uma subida de 44% em relação a 2022: foram 2,677 mil milhões de euros”. E, sim, são os mais mal pagos: os cidadãos do Nepal, Índia e Bangladesh recebem em média menos 30% do que portugueses. Em contas de 2022, e porque contribuem muito mais do que recebem, deram um lucro de 1,6 mil milhões de euros à Segurança Social. E se eles fossem todos para a terra deles, o que seria de nós?

Ninguém quer saber. Ninguém quer saber que durmam em regime de cama quente, pagando à hora o sono. Ninguém quer saber que sejam obrigados a improvisar casas em barracas, que muitas vezes acabam demolidas enquanto estão a trabalhar. Ninguém quer saber que tenham de acumular empregos ou andar pelo país à jorna, fazendo as campanhas agrícolas que mais ninguém quer fazer.

O que as pessoas querem é ter a casa limpa, o café servido, as frutas à venda no supermercado, as encomendas entregues à porta. E enquanto isso, vão-se queixando de como as rendas subiram porque agora há quem ponha dez ou quinze imigrantes a viver na mesma casa para ganhar milhares de euros.

A ninguém importa que seja indigno viver numa camarata. A ninguém importa que os meus colegas de ginásio vivam em apartamentos que são pouco mais do que quartos de hotel, mas que custam perto de um milhão não lhes parecem caros. A ninguém importa que se multipliquem as torres de luxo com apartamentos vazios ao ritmo a que se montam tendas nas ruas de Lisboa para aonde vão morar pessoas que trabalham. A ninguém importa que se venda café a preço dinamarquês servido por alguém que ganha um salário abaixo de espanhol.

Também ninguém parece muito impressionado com a forma como a Alemanha reestabeleceu os controlos em todas as suas fronteiras terrestres em agosto. Deve ter que ver com a garantia cândida que ouvi da boca de um agente alemão, aos microfones da rádio France Inter, procurando sossegar os franceses que diariamente cruzam a fronteira para ir trabalhar. “Não vamos controlar cada veículo, mas apenas aqueles que pareçam suspeitos”. E todos sabemos que cor têm os suspeitos.

* Jornalista de política

IN "VISÃO" - 04/10/24..

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