A naturalização do discurso
fascista nas relações
sociopolíticas das democracias
O surgimento do neoliberalismo e suas condições de regulação tornam o recrudescimento do fascismo muito mais expectável do que noutros períodos históricos do capitalismo.
Em Aspetos do Novo Radicalismo de Direita – publicado
recentemente em português pelas Edições 70 com tradução de Marian Toldy e
Teresa Toldy –, Theodor Adorno problematizou como o ressurgimento do
nacional-socialismo na democracia é ainda mais perigoso do que a
sobrevivência de tendências fascistas contra a democracia. O pathos
do nacionalismo, os truques da propaganda subvertidos em discursos
supostamente democráticos que engendram nossas estruturas sociais e
políticas em pleno século XXI fazem-nos refletir sobre se fenómenos
históricos se repetem... A preocupação em banir termos e símbolos é
importante, mas não só, o cuidado deve se estender à necessidade de
superar as ideias que estruturam esse tipo de ideologia.
A supremacia da raça, o ideal do “bom português” – que ainda encontra
espaço em debates públicos resguardados por certa polidez académica e
boa educação –, sucumbem à forma obtusa como o racismo encontra seu
lugar comum nos discursos sociais populares que resguardam heranças
fascistas.
Mas, as raízes que estruturam o discurso fascista são ainda mais
profundas, elas remetem a própria crise do capitalismo e de pouco
adianta que tentemos combater o fascismo como expressão formal de um
conteúdo de ódio, como é apanágio do discurso liberal, se não
combatermos o capitalismo. A alternância entre o bem-estar social e
pequenos avanços económicos fazem parte desse processo. São concedidos a
uma parcela pequena da população que, envolta pela alienação social, em
vez de lutar pelos seus direitos, fomentam uma competitividade entre a
própria classe trabalhadora que, fragmentada, começa a lutar contra ela
mesma, como num processo de autofagia que garante a manutenção do grande
capital.
É essa a classe trabalhadora alienada que não se
reconhece em George Floyd, na Gisberta, no Giovani Rodrigues, na Cláudia
Simões, no Bruno Candé. São as minorias sociais que acham que são
elite, ou que um dia vão ser. Naturalizam a corrupção, o machismo, o
racismo, a xenofobia e se autoflagelam nesse ciclo lancinante em que se
autoconsomem, há algumas centenas de anos, em um processo repetitivo e
degradante que tem dissipado o nosso próprio sentido de humanidade.
Esse processo não seria possível sem a ajuda de partidos, movimentos,
que se desenvolvem de forma calculista – com uma estrutura maleável
jogam de forma hábil com a inércia e a cumplicidade daqueles que
deveriam ser seus opositores. Nessa armadilha, os limites democráticos e
legais ficam sob a chancela da comunicação social que comummente é
gerida e fomentada pelos donos do capital.
Para os conformistas, é salutar reencontrar Bertold Brecht, que nos
lembra que o fascismo não é uma catástrofe natural. É possível resistir
mesmo nas condições mais terríveis, especialmente se compreendermos
esses processos como cicatrizes abertas geradas pelo capitalismo, que
faz com que agora tenhamos chegado a um momento histórico particular. O
surgimento do neoliberalismo e suas condições de regulação tornam o
recrudescimento do fascismo muito mais expectável do que noutros
períodos históricos do capitalismo. Também essas condições alteram as
bases de legitimidade do capitalismo, e ao que parece têm se tornado
mais robustas do que nunca... Nesse sentido, quem se diz antifascista,
antirracista e não é anticapitalista não é contra as relações de
produção que produzem a barbárie, é apenas contra a barbárie.
* Doutoranda em filosofia política na Faculdade de Letras da Universidade Coimbra.
IN "PÚBLICO"
28/07/20
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