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IN "PÚBLICO"
28/10/19
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Racismo: o mundo não é
a preto e branco
O que eu não posso é permitir que pessoas que sejam pretas por dentro e pretas por fora estejam convencidas que têm mais legitimidade do que alguém como eu, preta por dentro e branca por fora, para falar de racismo.
O mundo não é a preto e branco. O mundo é a cores. As pessoas são a
carga genética e as origens que têm. E quem não assume quem é, não
defende nem é capaz de defender os outros. Sou preta por dentro e de
pele cor de fiambre por fora, ou branca, como chamam às pessoas com esta
cor de pele. Nasci assim. Não tenho culpa. E não sou responsável pela
genética. Ninguém escolhe a cor com que nasce.
Mas não é por ser
branca que não posso pronunciar-me sobre o racismo. Tal como não sou
homossexual e não posso deixar de falar sobre o estigma associado. Ou
mesmo sobre os direitos e liberdades para as pessoas homossexuais. São
pessoas como eu. Como tu. Como eles. Como todos. Assim, como não defendo
e acuso agressores de mulheres, há tantos escondidos, de pele preta,
branca, elitistas e snobes. Sem nobreza. Na verdade, verdadeira pobreza.
O racismo é um assunto que deve ser da responsabilidade de todos:
pretos, brancos, amarelos, castanhos, homens e mulheres. Assim como a
mutilação genital feminina — típica na Guiné-Bissau (para mencionar
apenas um país de língua portuguesa).
É falacioso, e até vergonhoso, carregar a história, pesada e má,
transportando-a para o século XXI. Acusar o Estado do presente pelo
Estado do passado, numa mistura de nobres e escravos. Se quisesse
esconder as origens — a magia que é falar em forro e os meus patrícios
dizerem, como é que esta branca fala a língua da terra? Mas há quem
queira escudar-se na cor da pele, projetando esse peso que a escraviza
para as costas de todos, em vez de desconstruir, de forma elevada,
tijolo a tijolo, as camadas entre os que estimulam estes comportamentos,
com mobilização superior e anti-racismo.
O que eu não posso é permitir que pessoas que sejam pretas por dentro
e pretas por fora estejam convencidas que têm mais legitimidade para
falar de racismo do que alguém como eu, que sou preta por dentro e
branca por fora. Ao tentarem fazê-lo demonstram a sua incapacidade de
isenção. E a falácia que tanto promovem, apontando aos outros o dedo
indicador, esquecendo-se que, quando apontamos o indicador a alguém,
temos quatro dedos virados para nós.
Há semanas, a Associação Caboverdeana de Lisboa convidou-me para um
debate sobre racismo, em representação de um determinado partido. Do
outro lado, uma mulher, como eu, representava um Outro, Joacine Katar-Moreira, uma simpática pessoa,
afável no primeiro contato. Mas exala a raiva contra um país que agora
representa no parlamento: a República Portuguesa. Nesse debate, acordei
com o organizador que o inicio seria atribuído a Joacine e eu encerrava:
democracia. A senhora convidada, como eu era, africana como eu sou,
guineense como eu não sou, mas santomense como ela não é, arrolou
consigo um arco-íris de pessoas, oriundas do seu partido, preparadas
para o insulto vergonhoso.
E a senhora, em vez de se desvincular
daquela atitude, até fez um sorriso de escárnio. A essa personalidade,
Jorge Almeida, do ISEG apenas lhe dirigi, citando, as palavras do génio
autor da Teoria Geral da Relatividade, confirmada na minha terra, São
Tomé e Príncipe: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez
humana. Mas em relação ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta”.
(A. Einstein).
Joacine queixava-se ser a mais velha de 11 irmãos e
oriunda de uma família de intelectuais da Guiné-Bissau. E que os
migrantes são maltratados em Portugal. O caminho para a liberdade é
feito de entrega total. Despojarmo-nos de tudo e servir os outros.
Serviço, etimologicamente, é servir os portugueses e os pagadores e
migrantes, sem traumas. Sem recorrer à política para benefício pessoal.
Porque há Áfricas, de um arco-íris mágico. Onde todos cabemos. E eu,
comunicadora em saúde, recomendo aos deuses e diabos da democracia que
temos o dever de respeitar os direitos e liberdades dos outros. E de
exigir aos outros esse respeito.
Criar fossos e aumentar a discussão só nos faz partir as pontes que nos
ajudam a ultrapassar barreiras. A mente humana é difícil. Complicada
até. Mas a excelência da ciência obriga-nos a juntar tudo e todos num só
mundo, o arco-íris. Criar leis não muda os comportamentos e ainda menos
as ideias das pessoas. Mobilizarmos para a diferença sim. É que, como
dizia António Barreto no PÚBLICO, já somos ameaçados (perseguidos até)!.
IN "PÚBLICO"
28/10/19
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