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IN "A BOLA"
07/09/18
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Porno-Olimpismo:
À Mesa do Orçamento
Em
consequência dos ofuscantes espetáculos de luzes e de cores e dos
foguetórios proporcionados pelos grandes eventos desportivos, cada vez
mais frequentados por uma “beautiful people” de pacotilha à procura de
exposição mediática, a generalidade dos dirigentes desportivos,
salvaguardando-se sempre as devidas exceções, à falta de mundo, passaram
a orientar a sua ação mais preocupados com o “dress code” das grandes
cerimónias do croquete do que, propriamente, com as condições de
participação competitiva dos atletas, com a organização do alto
rendimento ou com o desenvolvimento da prática desportiva nos respetivos
países.
Em consequência, o desporto está a ser reduzido
ao grau zero da condição humana quer dizer, está a ser transformado numa
práxis de caráter reducionista que, ao serviço do vil metal simbolizado
pelas medalhas olímpicas, nega à prática desportiva a assunção de
valores espirituais e transcendentes, condenando o ser humano que é o
atleta a centrar-se, em regime de exclusividade, na estética do corpo e
nas suas performances às quais atribui o primado que conduz a sua vida
ao serviço da “beautiful people” que passou a tirar partido dos
espetáculos desportivos e a conduzir o desporto para a cloaca da
história. Nestas circunstâncias, o desporto não pode ser deixado em roda
livre. O Estado tem de intervir sobretudo a montante dos sistemas
desportivos no sentido de lhes imprimir um destino que, verdadeiramente,
tenha a ver com os interesses da generalidade das populações e dos
países.
O desenvolvimento do desporto enquanto promotor de
educação e de cultura ao serviço do desenvolvimento humano, antes de
ter um sentido quantitativo traduzido nas medalhas olímpicas, tem de ter
um sentido axiológico que se traduz nos princípios e nos valores que o
devem orientar. E foi por isso que, nos primórdios do Movimento Olímpico
(MO), o Altius do frade Didon, da máxima olímpica que Pierre de
Coubertin adotou, vinha em último lugar: Citius, Fortius, Altius.
Porque, a prática de cada um e de todos era para ser vivida em busca de
superação e de transcendência pessoal e social. Como refere Manuel
Sérgio, “o ser humano é uma contínua passagem do instinto à
inteligência, à liberdade e à cultura”. (A Bola on line, 2018-09-02) e
não o contrário como, agora, está a acontecer num certo modelo de
Olimpismo em que, na ausência de cultura, perde-se liberdade, anula-se a
inteligência e, em consequência, reduz-se as possibilidades dos
atletas, a competência dos treinadores e a missão dos dirigentes, à
expressão mais primária do instinto de sobrevivência. E, assim, o
desenvolvimento do desporto é transformado no mais desconchavado
darwinismo social: Emocional na sua práxis; Tribalista na sua
organização; Patrioteiro na sua missão evangelizadora.
Pierre
de Coubertin, desde a primeira hora, recusou que o MO pudesse evoluir
neste sentido que não lhe confere qualquer dignidade institucional.
Desde logo porque, o Olimpismo subjugado ao rendimento, à medida, aos
recordes e aos espetáculos desportivos, à revelia da prática desportiva
de base que garante a dialética do processo de desenvolvimento,
transforma: O Estádio Grego num Circo Romano; Os dirigentes desportivos
em meros lanistas; Os políticos em tristes “entertainers”; Os atletas em
perfeitos mercenários; A população, tal qual rebanho, em simples
consumidora acéfala de espetáculos desportivos. Sempre que tal acontece,
o MO assume uma dimensão antidemocrática. Na extinta República
Democrática da Alemanha, aquando das manifestações em defesa da
liberdade e da democracia, exibiam-se cartazes onde se podia ler:
“Abaixo os privilégios dos artistas e dos desportistas”. Porquê? Porque
os dirigentes políticos e desportivos reduziram o conceito de Olimpismo
às medalhas olímpicas que, depois, se veio a saber “estavam dopadas”.
Ora
bem, Pierre de Coubertin, no espírito olímpico do Citius, Altius,
Fortius, expressou bem a necessidade de enquadrar as performances dos
atletas na realidade da prática desportiva de base dos respetivos
países. Porque, o desporto deve ser um espaço de valores ético-morais
que não podem desvanecer-se na voragem do neo-mercantilismo como
expressão última do capitalismo selvagem que se limita a avaliar o
desporto pelos resultados nas competições internacionais completamente
desinseridos das políticas públicas de generalização da prática
desportiva. A última coisa que se pode admitir num país democrático de
economia liberal é haver atletas a ganharem lugares de pódio nos Jogos
Olímpicos e em Campeonatos do Mundo enquanto o já de si reduzido número
de praticantes há muito que estagnou ou entrou mesmo em regressão.
O
amoralismo populista de muitos Comités Olímpicos Nacionais (CONs), com o
envolvimento das próprias tutelas políticas, nada tem a ver com a
dignidade dos países, com os valores do desporto ou os interesses dos
cidadãos. Que os partidos, na sua ânsia de poder, se sujeitem a isso,
nos tempos de demagogia populista que se vivem, é triste mas não é para
admirar. Pelo contrário, é um atentado aos princípios e aos valores do
Olimpismo e uma vergonha institucional que os CONs, à semelhança daquilo
que se passava nas democracias populares, se sujeitem à humilhação de
viverem tutelados sob os interesses da oligarquia política dos
respetivos países. Esta situação tem a ver com uma certa eugenia
política e social que, em matéria de desporto, tomou conta do ideário da
generalidade dos partidos políticos sejam eles de esquerda ou de
direita e está, por ganância económica, a ser assumida pelos próprios
CONs.
Num artigo intitulado “L’Eugénie”, publicado na
“Revue Olympique” de Novembro de 1912, Pierre de Coubertin condenou a
eugenia política e social, decorrente das “inefáveis divagações” do
antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) que pretendia
substituir a conhecida fórmula da revolução francesa “liberdade,
igualdade, e fraternidade” por “determinismo, desigualdade, e seleção”. O
problema é que, atualmente, em colaboração com os respetivos governos,
muitos CONs estão, precisamente, a adotar a fórmula eugénica de Vacher
de Lapouage para determinarem as suas políticas desportivas que se
sustentam (1º) Na ilusão do determinismo científico dos modelos de
treino que, sem qualquer pudor, prometem a conquista de medalhas
olímpicas; (2º) Na antidemocrática desigualdade dos cidadãos no acesso à
prática desportiva; (3º) Na estuporada seleção prematura daqueles que
mais rendem condenando a grande maioria deles a um futuro sem futuro
nenhum. Em consequência, países há que acabam por ficar sem medalhas,
sem praticantes desportivos e com um sem número de desintegrados sociais
expurgados da prática desportiva porque deixaram de atingir o padrão
olímpico exigido. Ora, não foi para isto que Pierre de Coubertin fez
renascer nos tempos atuais os Jogos Olímpicos da antiguidade grega.
Perante
este estado de coisas, a sociedade assiste impotente à degradação dos
valores do desporto protagonizada por uma oligarquia desportiva que, se
ao tempo da Guerra Fria, pontuava sobretudo nos países socialistas e nas
democracias populares, agora, pontua nas democracias liberais de
economia de mercado a partir de governos ditos socialista,
sociais-democratas e democratas cristãos que passaram a olhar para o
desporto, não como um instrumento de políticas públicas dirigidas à
qualidade de vida da generalidade dos cidadãos, sobretudo dos mais
desfavorecidos, mas como um instrumento da afirmação do próprio poder
político-partidário à custa do dinheiro dos contribuintes. E quando
alguns dirigentes políticos e desportivos, na maior das ignorâncias,
pretendem em termos de políticas públicas, determinar o desporto como um
desígnio nacional só nos fazem lembrar os tempos em que o Turner
(movimento desportivo chauvinista alemão) foi colocado ao serviço do
Movimento Nazi.
Pactuar com políticas públicas desprovidas
de princípios de ordem democrática e social significa, apenas, faltar
ao inalienável dever de considerar o desporto como um instrumento de
desenvolvimento humano que, os dirigentes do MO, sob sua honra, se
comprometeram a respeitar. Infelizmente, agora, salvo sempre as devidas
exceções, os dirigentes desportivos, subservientemente, numa espécie de
“porno-olimpismo”, aceitam ser instrumentos do poder político desde que
lhes garantam um lugar sentado à mesa do orçamento.
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
07/09/18
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