Há lugar para gente normal
na política?
Que os partidos tenham à sua frente “gente normal” parece-me bem mais
tranquilizador do que aqueles momentos em que estão entregues a pessoas
que pairam acima das circunstâncias prosaicas da vida.
Conta-se, não sei se com fundamento ou sem ele,
que a vida política de Cavaco Silva esteve para acabar quando a sua
mulher percebeu que um jornalista andara a fazer perguntas aos operários
de uma pequena obra que decorria na casa do então primeiro-ministro.
Aquilo a que estamos agora a assistir é à aplicação aos actuais líderes
do PSD e do PS do escrutínio dos detalhes do quotidiano a que até agora
praticamente só se sujeitara de forma tão sistemática Cavaco Silva.
Enquanto escrevo, as dívidas de Passos Coelho à Segurança Social
fazem manchete. Entretanto no blogue Portugal Profundo publica-se uma
investigação sobre o local de residência de António Costa em 2013 e
2014. Mais ou menos em simultâneo assistimos também ao ressuscitar dos
problemas do apuramento dos montantes de contribuição autárquica pagos
por Costa no século passado e a uma onda de indignação com o facto de
Passos ter sido alvo de processos de execução fiscal.
Lendo e ouvindo as notícias sobres estes casos (e presumo que nas
próximas semanas outros surgirão a um ritmo pendular) deparo com
incumprimentos, imprevidência e naturalmente com o reverso do mundo
kafkiano constituído pela nossa administração – ou seja aquele volúvel
“vamos a um suponhamos” na hora de calcular os montantes de IMI e
segurança social e em que mesmo depois de tudo pago parece que
continuamos sempre em falta – mas não encontro tentativa alguma de usar
em benefício próprio o poder que se deteve ou detém. E aqui chego à
dúvida que dá título a este texto: há lugar para gente normal na
política? Ou seja, gente com família, flutuações nos rendimentos,
documentos mal preenchidos, multas…? Não sei, e é aí que para mim está
parte da questão.
Na política, como em tudo, as pessoas com vidas perfeitas causam-me
grandes reservas. Em primeiro lugar porque para se ter uma vida perfeita
do ponto de vista político é cada vez mais necessário ter sido sempre
funcionário público (ou do partido), de preferência com direito a um
serviço de secretariado, para culpar pelos eventuais erros e atrasos, e
motorista a quem imputar os excessos de velocidade e estacionamentos em
locais indevidos. Ora essa vida perfeita é de temer num político: coisas
tão corriqueiras quanto o sistema para pagamento das SCUTS ou as
inúmeras obrigações fiscais e administrativas a que estão sujeitos
empresas e cidadãos só podem ter saído da cabeça de quem está de má fé
ou de quem vive no universo protegido e artificial que se sustenta do
Estado e a quem tudo parece legítimo na hora de lhe arranjar mais
sustento e poder.
Quem vive fora desse casulo estatal confronta-se com os tectos para
os recibos verdes, os meandros dos actos únicos, as facturas de que teve
de pagar IVA mas que nunca lhe foram pagas, as multas porque não
entregou a tempo o anexo X do modelo Z ou trocou o PEC com o PPC, a
saber Pagamento Especial por Conta e Pagamento por Conta, duas
denominações que só fazem sentido para o seu criador… Caso o político em
causa tenha sido empresário a possibilidade de aparecer um papelinho
entregue fora de prazo aumenta exponencialmente. A transformação da
classe política numa espécie de casta superior dos quadros do universo
Estado, quando não numa promoção para quadros partidários, não é alheia a
esta quase impossibilidade técnica de quem está fora do casulo passar
no escrutínio.
Em segundo lugar a perfeição causa-me dúvidas porque frequentemente
não passa de uma ficção e uma ficção criada por quem tem poder para seu
próprio benefício. Querem que recorde a perfeição mais que perfeita
encarnada por Ricardo Salgado? E o curriculum ganhador de Sócrates? E já
esqueceram a bajulação de que estes homens foram alvo por gente que
andava de dedo em riste a acusar os outros? Em geral os maiores
problemas escondem-se atrás das maiores perfeições. Mais perverso ainda,
o problema dos perfeitos é que ao serem descobertas as suas
imperfeições, para não lhes chamar outra coisa, continuam a manter
contra a evidência dos factos, as suas narrativas perfeitas de vidas
perfeitas e de decisões perfeitas. Não é por acaso que ouvir Bava e
Ricardo Salgado na AR ou ler as declarações indignadas de Sócrates com a
situação fiscal de Passos Coelho nos põe simultaneamente entre o riso e
o choro. Afinal já não se trata de mentir ou falar verdade mas sim de
manter para lá do razoável uma narrativa de que já sobra apenas aquele
patético protagonista.
Que os partidos tenham à sua frente “gente normal” parece-me bem mais
tranquilizador do que aqueles momentos em que estão entregues a pessoas
que pairam acima das circunstâncias prosaicas da vida. Mas não se pode
também subestimar a vulnerabilidade que tal representa face aos
corruptos – que imediatamente nivelam tudo pelo seu nível,
invariavelmente baixo – e aos radicais. O radicalismo cresce também
porque os radicais conseguem alimentar no eleitorado a ideia de que
todos, à excepção deles, são corruptos.
Não sei se ainda vamos a tempo mas parece-me essencial que nesta
campanha eleitoral que já anda por aí se recupere a normalidade, ou
seja, que líderes normais discutam os problemas das pessoas normais. O
culto da excepcionalidade arrebata muita gente mas é meio caminho andado
para o desastre.
IN "OBSERVADOR"
08/03/15
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