01/01/2024

ADOLFO MESQUITA NUNES

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Desmascaremos o intolerável
abuso de quem usa o nome 
de Deus para fazer política

Anda por aí uma direita que usa e abusa da Igreja e do nome de Jesus para construir um programa político. Ventura é o expoente máximo, dizendo até que Deus lhe deu uma missão. Mas não é o único a afirmar que a consequência lógica do catolicismo é a adesão a específicas políticas públicas, à aprovação de determinas leis, ao voto num partido.

Isso é um disparate sem nome e a Igreja tarda em ativamente distanciar-se desse intolerável aproveitamento.

E é um disparate porquê?

Em primeiro lugar, não faz sentido que seja a lei a impor-nos a verdade e o amor, porque o nosso caminho até Deus tem de ser feito em liberdade, não por obrigação.

Na Redemptoris Missio, o Papa João Paulo II afirma que a Igreja propõe, mas nada impõe. Da mesma forma, na Instrução Libertatis Conscientia, o então Cardeal Joseph Ratzinger recordava que Deus quer ser adorado por homens livres.

Ao contrário daquilo a que apelam católicos de pacotilha que pululam na nossa política, o amor a Deus não se impõe por leis votadas no Parlamento.

Em segundo lugar, se a ordem moral nos é revelada por Jesus, ela é interpretada e aplicada pelo Homem.

Somos nós, pecadores, ignorantes, que procuramos interpretar a verdade. Como é evidente, essa interpretação está condenada a ser imperfeita, provisória, e nem sabemos se é sequer aproximada.

Uma coisa é pautarmos os nossos gestos pela nossa interpretação dessa verdade. Coisa diferente é fazer dessa interpretação uma lei que obrigue toda a gente e que condena quem dela se afasta.

A 12 de março de 2000, na Santa Missa no Dia do Perdão, o Papa João Paulo II pediu desculpa a Deus por todos os cristãos que usaram da violência no serviço à verdade. Neste pedido, o Papa reconheceu que os cristãos, mesmo quando acreditando estar ao serviço da verdade, podem cometer erros, pecar, exercer violência sobre os outros. Este é o reconhecimento da falibilidade da nossa leitura da verdade. E é por isso que nenhum partido pode ousar ser intérprete autêntico dessa ordem.

Em terceiro lugar, não cabe ao Estado atuar em nome da Igreja, substituindo-se a esta, usando os seus meios para impor a ordem moral.

No 56.º Congresso Nacional de Estudo, o Papa Bento XVI foi claro a este respeito: “A Igreja não pode indicar qual ordenamento político e social deve ser preferido (…). Cada intervenção direta da Igreja neste campo seria uma ingerência indevida”.

Nenhuma lei pode ser imposta, nenhuma regra pode coagir, com base numa suposta legitimidade divina. Estado e Igreja são a todos os níveis entidades distintas, que não podem confundir-se, e é por isso um ultraje que haja partidos, tantas vezes contando com a omissão da Igreja, a provocar essa confusão. Isso tem de ser desmascarado, e rapidamente.

Claro que isso não significa que a comunidade cristã não possa, como tal, pronunciar-se a respeito das matérias do Estado. O que significa é que a Igreja não pode utilizar o Estado e o monopólio da força e da coação de que este beneficia para impor a sua ordem ou para evangelizar – algo que a Igreja há muito reconheceu, aliás, mas que alguma direita teima em não vislumbrar.

Mas se Deus existe para os crentes, como podem estes abdicar da ordem em que acreditam? Sucede que não é disso que se trata. Aqui apenas se nega que o Estado possa usar os seus meios para impor a todos uma qualquer moral. Aqui apenas se recorda que há diferentes formas de ver o bem e o mundo e que cada pessoa deve ser livre de viver de acordo com elas.

Em quarto lugar, porque num mesmo Estado convivem pessoas de várias religiões e ideologias, ou até mesmo pessoas sem qualquer religião ou ideologia firme.

Qualquer uma dessas pessoas tem a sua ordem moral, ou a sua interpretação do que deva ser a ordem moral, que vai variando de acordo com a sua fé ou contextos pessoais. Se assim é, não podemos ter o Estado a impor a uma ordem moral a todos aqueles que dela não partilham, a todos aqueles que nela não acreditam.

Ciente de que nos nossos Estados convivem cidadãos de várias religiões e ideologias, ou até sem qualquer religião, o Papa Paulo VI reconheceu na conclusão do Concílio que o Estado deve ser imparcial em relação a essas religiões, assumindo a responsabilidade por uma convivência ordenada e tolerante entre os cidadãos.

Daí que, na encíclica Deus Caritaa Est, o Papa Bento XVI afirme, com clareza, que a doutri- na social católica “não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspetivas e formas de comportamento que pertencem a esta”.

Deixemos, por isso, Deus e Jesus fora destas eleições, desmascarando todos aqueles que usam e abusam da religião e da fé para fazer política.

E, já agora, instemos a Igreja a recordar isto a quem ousar dizer que é emissário político de Deus.

* Advogado, militante do CDS

IN "NOVO"- 27/12/23

NR: Achamos que não se deve abusar do nome de ninguém! Não praticamos nenhuma fé e por isso não beliscamos a seriedade do autor..

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