15/08/2019

FRANCISCO MENDES DA SILVA

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Seria absurda 
uma interpretação literal 
dos princípios do PS

Na polémica destes dias sobre as incompatibilidades entre o poder político e os interesses privados, o mais interessante não são os casos concretos que vieram à baila, mas a forma como o PS tentou dominar a discussão.

Foi tudo muito instrutivo sobre a facilidade com que os políticos em Portugal acham que conseguem lavar a sua própria consciência - e, de caminho, o cérebro do eleitorado.

Quando a discussão começou, a propósito dos contratos da empresa do filho do Secretário de Estado da Protecção Civil com o Estado, a reacção instintiva foi a de dizer que a lei não obrigava à demissão do governante, o que qualquer pessoa que soubesse ler percebia que era mentira. Foi por isso que depois António Costa quis chutar a polémica para canto, inventando umas "dúvidas" de interpretação que pediu à PGR que esclarecesse.

A prova de que o PS não acredita na existência dessas dúvidas é que, ao mesmo tempo, utilizou uma linha de defesa contraditória: a de que afinal a lei é absurda e, levada às últimas consequências literais, tem aplicações injustas. Nas palavras do ministro Santos Silva, "seria absurda uma interpretação literal da lei". É por estas e por outras, acrescentaram exasperados muitos socialistas, que deixou de ser possível recrutar os melhores para a política.

Sobre isto, é preciso lembrar algumas coisas. A primeira é que a polémica tem a sua pré-história num ajuste directo (o das célebres golas inflamáveis) decidido no gabinete do Secretário de Estado por um adjunto em cujo currículo nada havia que o recomendasse para tais funções, a não ser as provas dadas enquanto jovem com uma carreira promissora de eterno boy do PS. Que legitimidade têm os socialistas para se queixarem de que "os bons" não querem ir para a política? Nenhuma.

Depois, é bom recordar que este tipo de leis sobre impedimentos e incompatibilidades, por natureza, pode gerar situações concretas de aparente injustiça. Não pode deixar de ser assim. Estas leis servem para prevenir riscos abstractos, em nome da salvaguarda do interesse público da confiança na imparcialidade da actuação do Estado. E por isso, sim, elas têm de ser interpretadas literalmente e não podem estar dependentes de em concreto haver realmente situações de promiscuidade indesejável. O que lhes é pedido não é que resolvam problemas a posteriori; é que evitem dúvidas a priori.

Por exemplo: se os juízes pudessem acumular as suas funções com outros interesses económicos e profissionais, significaria isso que os juízes orientariam necessariamente a sua magistratura para a defesa desses interesses particulares? Não. Mas poderia um Estado de Direito suportar essa dúvida? Também não.

Por fim, é curioso notar a evolução do "pensamento" do PS nesta matéria. Até agora, sempre que um socialista pátrio se via discutido por razões éticas, o mantra era aquele que Pina Moura tornou célebre: "a ética republicana é a lei". Ou seja, se da letra da lei não resulta que determinada conduta é proibida, então é porque ela é moralmente irrepreensível.

Sempre achei estranha esta adesão dos nossos socialistas ao positivismo jurídico de Oitocentos, porque a defesa de que as leis têm uma perfeição moral intrínseca - de que são o corolário lógico de um raciocínio imbatível sobre a realidade que visam regular - é mais coisa do liberalismo capitalista. Os negócios privados precisam de segurança e previsibilidade e, portanto, o que os liberais clássicos exigiam ao Estado ou a qualquer outro soberano é que respeitassem escrupulosamente a letra da lei, sem ceder à tentação das interpretações criativas e arbitrárias.

Seja como for, aquela era a doutrina do PS. Acontece que agora há uma lei que, lida literalmente, é um empecilho para a defesa ética de um socialista. O que, como diria Kant, é chato. Por isso o PS mudou de imperativo categórico: em vez da equiparação rigorosa entre lei e ética, temos o diametralmente oposto "seria absurda uma interpretação literal da lei".

Nada contra. As leis têm de estar sujeitas a crítica e ao nosso permanente cepticismo. Mas o que estes dias mostraram é que há outra coisa que "seria um absurdo" levarmos à letra: as declarações do PS sobre quais são e quanto valem os seus princípios éticos.

* Advogado

IN "JORNAL DO NEGÓCIOS"
06/08/19


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