Ide mas é dormir
Uma Humanidade olheirenta
começa a acordar para a autoevidência de que, surpresa!, os humanos
precisam mesmo de dormir. O que em tempos foi visto como um luxo, é hoje
apontado como uma louvável competência
Grande
parte das primeiras páginas da carta que o velho imperador romano
escreve ao seu filho Marco Aurélio, na obra-prima Memórias de Adriano,
são dedicadas a um assunto prosaico: o sono. Marguerite Yourcenar bem
sabia, muito antes dos inúmeros estudos científicos que hoje o
comprovam, que este era um tema crucial quando se faz o balanço de uma
vida em forma de conselhos para um jovem sucessor. O sono, esse “grande
restaurador com poderes divinos” que nos faz “deixar de existir”, é
muito mais essencial ao Homem do que ele gosta de acreditar. Como diz
Yourcenar, “se pensamos tão pouco num fenómeno que absorve pelo menos um
terço de toda a vida é porque é necessária uma certa modéstia para
apreciar as suas bondades”.
“Adormecidos, Caio Calígula e o justo
Aristides equivalem-se; eu renuncio aos meus vãos e importantes
privilégios; deixo de me distinguir do guarda negro que dorme
atravessado junta da minha porta”, escreve Adriano. É pois assim num
exercício de “certa modéstia” que hoje este espaço nobre da revista não
fala das “fragilidades inadmissíveis” do nosso país (e que são tantas,
Senhores!), mas sobre o ato mais banal, mundano e unificador da
Humanidade que é dormir.
O meu ponto é que o sono, ou melhor, a
falta dele, se tornou um problema global de saúde pública. Dormimos
pouco – muito menos do que as oito horas mínimas recomendadas por dia – e
dormimos mal. Há poucas semanas, um título chamou-me a atenção. “Dormir
é o novo símbolo de status”, provocava o New York Times ao defender a
tese de que o sono é, nos dias que correm, uma medida de sucesso e uma
espécie de competência a ser cultivada a todo o custo. A forma como as
sociedades olham para este momento em que, nas sábias palavras de
Adriano, “nos abandonamos conscientemente a esta bem-aventurada
inconsciência” diz muito sobre o l’air du temps.
Nas últimas
décadas, a cultura yuppie dos anos 80 e um certo neoliberalismo, que se
arrastou por este século dentro, fizeram-nos acreditar que dormir era
uma perda de tempo: quem chega ao topo tem de abdicar desses momentos de
inação em prol de mais horas a trabalhar, a cultivar-se e a fazer
coisas. Era bem visto dizer que se dormia pouco, e que se vivia feliz
com isso movido a baldes de cafés e Red Bulls enquanto se ouvia o hit de
Bon Jovi “I’ll sleep when I’m dead”.
Com os smartphones e a
conectividade 24h por dia, a coisa piorou: mais solicitações e menos
tempo passado no doce vale dos lençóis. Esgotamentos ou burnouts
tratavam-se com remédios, e siga para bingo.
Só que o que em
tempos foi visto como um luxo, que todos os bem-sucedidos adoravam dizer
que não se podiam oferecer, é hoje apontado como uma louvável “skill”,
na irritante terminologia daquele management que adora inglesismos.
Dezenas de estudos científicos atestaram nos últimos anos que o sono é o
melhor reparador do organismo e condição essencial para a nossa saúde e
bem-estar geral. Crucial não só para fortalecer o nosso sistema
imunitário como para combater o envelhecimento, o stresse e a depressão e
estimular a nossa memória, função cognitiva, produtividade,
criatividade e inteligência emocional. Entendamo-nos: a falta de sono
pode mesmo ser uma questão de vida ou de morte.
E assim, uma
Humanidade olheirenta começa a acordar para a autoevidência de que,
surpresa!, os humanos precisam mesmo de dormir. Hoje brotam como
cogumelos centros de sono, estúdios de meditação, apps e gadgets criados
em
Silicon Valley, livros e especialistas vários para tratar destes
distúrbios e até programas de remuneração de recursos humanos que pagam
pelas horas dormidas, enquanto os financeiros calculam os danos causados
à economia – cerca de 411 mil milhões de euros às empresas
norte-americanas, 2,28% do PIB do EUA.
Bocejo… Estamos tão
cansados de estar cansados. Venham as férias para fazer restart e meter
os sonos em dia. De preferência, de vez.
IN "VISÃO"
22/07/17
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