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Como enfrentar um cancro
na infância e ganhar
Todos os anos 350 crianças são diagnosticadas com cancro em Portugal. Hoje a Gulbenkian acolhe o primeiro seminário de Oncologia Pediátrica no país, organizado pela Fundação Rui Osório de Castro com o apoio da Acreditar. Salomé e Cláudia contaram ao i o que sentiram no diagnóstico, no tratamento e na cura.
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Salomé tinha 12 anos e era uma adolescente como as outras. Miguel
tinha três. "É uma sensação de impotência e desespero indescritíveis." É
assim que a jovem hoje com 22 anos, no terceiro ano de Turismo e Gestão
Hoteleira, lembra o momento do diagnóstico. Cláudia Marcos, mãe do
pequeno Miguel, lembra que a primeira reacção foi negar. "Achei que os
médicos se tinham enganado. O meu filho era uma criança saudável, ia
fazer quatro anos em breve e apenas sentia dores de cabeça", recorda.
Quando lhes comunicaram o diagnóstico definitivo de Miguel, Cláudia,
hoje com 41 anos, deixou de pensar no presente. "Foquei um momento no
futuro: o momento da cura. Só precisava que me dissessem o que eu tinha
que fazer para conseguir chegar aí." O Miguel iniciava um longo processo
de tratamento com quimio e radioterapia, já que o tumor não era
operável.
Também Salomé, que fez dois anos de quimioterapia para debelar uma
leucemia, teve de esperar que o tempo a serenasse. "A maior dúvida que
sempre me acompanhou foi: 'Será que vou conseguir? Quem me garante que
sim?'", recorda. "Apesar de toda a força que fui obrigada a arranjar,
até hoje, não sei bem onde, essa foi uma questão para a qual, ao longo
de todo o processo, nunca consegui encontrar resposta. Apenas quando
tudo terminou e fiquei curada, consegui acreditar que era possível."
Todos os anos 350 crianças em Portugal são diagnosticadas com cancro.
Salomé e Miguel fizeram parte desta realidade dolorosa e estão curados,
o prognóstico de quase oito em cada dez casos quando o diagnóstico é
precoce. Ela quer fazer carreira fora de Portugal. Ele tem 11 anos, está
no 6.o ano e quer ser médico. A mãe não duvida: é um excelente aluno e
já tem alguma preparação, pelo menos emocional, diz.
Hoje a Gulbenkian acolhe o primeiro seminário no país dedicado à
Oncologia Pediátrica, um encontro organizado pela Fundação Rui Osório de
Castro que desde 2009 se dedica à divulgação de informação às famílias
com filhos doentes. As duas histórias vão ser partilhadas, quem sabe
para darem força a outras famílias.
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Mas o objectivo da fundação é aumentar a informação, sem a qual todo o
processo se torna ainda mais nubloso. São responsáveis pelo PIPOP -
Portal de Informação Português de Oncologia Pediátrica, que explica em
linguagem simples mas com apoio de médicos as diferenças entre os tipos
de cancros, tratamentos mas também os apoios a que as famílias têm
direito. No ano passado lançaram folhetos sobre diferentes tipos de
cancro e estão neste momento a fazer vídeos animados para que as
crianças possam entender mais facilmente as doenças que têm.
Mariana Oliveira, directora executiva da fundação, não tem dúvidas de
que pais e filhos perceberem o que estão a viver, porque dói ou cai o
cabelo, acaba por ser parte integrante do tratamento, como que um
calmante. Mas acima de tudo explica que procuram responder ao "desnorte"
inicial dos pais e à tentação de pesquisar na internet, onde nem sempre
a informação é credível.
Quando se procura pela doença de Miguel na internet, um
rabdomiossarcoma da face, são muitas as páginas com respostas. Em cada
uma, multiplicam-se os pormenores técnicos, difíceis de entender. Um dos
folhetos publicados da fundação é precisamente sobre este cancro: tem
origem nas células imaturas que formam os músculos e é o tipo de tumor
dos tecidos moles mais comum nas crianças.
O folheto explica o que torna o prognóstico mais ou menos favorável e
dá pistas sobre as perguntas a fazer ao médico. Cláudia diz que, sendo o
cancro já bem conhecido, nunca quis saber das estatísticas. Quando o
filho foi diagnosticado, estava a meio de um mestrado em biologia
molecular humana, por isso sabia que isso era pouco relevante para o
desfecho. Tem pensado sobre o melhor conselho para dar aos pais, mas não
consegue chegar a uma conclusão. "Cada pessoa reage de forma muito
diferente. Lembro-me que me irritava muito com as abordagens
protectoras", partilha.
"Essencialmente dos amigos menos chegados, que
nessa altura querem ser muito próximos."
Cláudia considera importante que os amigos estejam presentes, mas
explica que a força veio essencialmente do filho e da oração. Salomé
também rezava e lembra o apoio da família e dos médicos. Mas recorda em
particular o dia em que uma voluntária da Acreditar - Associação de Pais
e Amigos de Crianças com Cancro - a visitou no hospital. Falar com
alguém que tinha passado pelo mesmo que ela foi uma "luz ao fundo do
túnel" e hoje é também voluntária.
No seminário, vão estar especialistas dos serviços de oncologia
pediátrica a explicar como funcionam mas também peritos em apoios na
área educativa, psicológica ou nutricional. "O tema é pesado, assusta
qualquer um. Mas quando sabemos que estamos a lidar com famílias que
estão a passar por isto e que faz a diferença, o nosso trabalho é muito
facilitado", diz Mariana Oliveira.
Na primeira pessoa
Salomé Freitas
O diagnóstico
Sem dúvida o momento mais marcante e mais horrível em toda a minha
vida. Uma imagem que nunca serei capaz de esquecer e uma sensação de
impotência e desespero indescritíveis.
O tratamento
Os efeitos secundários da quimioterapia são o que mais custa suportar
e o mais doloroso. O apoio, sobretudo da família, dos médicos e dos
voluntários, ajuda bastante a superar os momentos mais difíceis.
Dúvidas
A maior dúvida foi sempre “será que vou conseguir?” Apenas quando
tudo terminou e fiquei curada, consegui acreditar que era possível. Ao
longo do tempo surgiram pequenas dúvidas: “porque é que tenho tantas
aftas?” “porque é que mal consigo levantar-me da cama?” “porque é que
estou tão gordinha?”. Com o apoio dos médicos, enfermeiros e psicólogos,
tudo foi ficando mais claro.
Força
O dia em que tomei contacto, pela primeira vez com a Acreditar. Foi
uma lufada de ar fresco, uma luz ao fundo do túnel, uma esperança extra
que nunca vou esquecer. Também rezava muitas vezes e pensava que não
queria ficar por ali agarrando-me a uma força interior que penso que a
maioria das pessoas não sabe que tem! E ainda bem.
Cura
Sou alguém “especial”. Enfrentei algo que é capaz de nos pôr à prova a
todos sem que estejamos à espera, que pensamos que só acontece aos
outros. Algo terrível mas que pode ser também muito bom. Dou muito mais
importância e valor à minha vida e penso que não vale, de todo, a pena
desperdiçá-la com coisas fúteis e que nos façam sentir mal.
O pior e o melhor
O pior são as marcas físicas e sobretudo psicológicas. O melhor as
amizades que fiz e a oportunidade de entrar no mundo do voluntariado
para ajudar outras crianças e jovens.
Cláudia Marcos
O diagnóstico
Achei que os médicos se tinham enganado. O meu filho era uma criança
saudável, ia fazer quatro anos e só sentia dores de cabeça. Depois,
deixei de estar ligada ao presente e foquei um momento no futuro: o
momento da cura.
O tratamento
A morfina deixava-o totalmente inactivo, a quimioterapia
provocava--lhe enjoos e transformava as refeições num verdadeiro
tormento, a radioterapia acabou por lhe provocar feridas muito graves na
pele... Tudo foi muito difícil.
Dúvidas
A grande angústia da possibilidade da morte e a procura de um sentido
para todo este processo. O “silêncio” de Deus perante o sofrimento das
crianças fez-me ter muitas dúvidas na existência de um sentido, fez-me
duvidar de muitos valores que tinha, até então, assumido como
verdadeiros.
Força
É incrível ter sido esse mesmo silêncio a aumentar a minha Fé em
Deus. O meu filho mostrou-me, a cada momento, que não estava só e que,
independentemente do desfecho, estávamos a caminhar para onde tínhamos
de ir. O silêncio estava apenas em mim.
Cura
A vida deixou de ter de ser perfeita e isso foi muito bom. Depois da
cura ficaram sequelas que não se resolveram de imediato (algumas poderão
não se resolver nunca). O Miguel não produz a hormona de crescimento e
perdeu a visão do olho direito. Por isso, continuam os exames, outros
tratamentos e muito acompanhamento.
O pior e o melhor
O pior foram as dores. O melhor foi aprender a olhar, a sentir, a dar significado aos momentos de silêncio.
* Ao menos hoje contribua no peditório da Liga Portuguesa Contra o Cancro, ou está à espera de ter para ser solidário?
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