Compromissos necessários
A lógica de rigor em que se fundou a Lei dos Compromissos é cega. Trata todas as instituições por igual
As tentativas de reforço do controlo orçamental e a reintrodução de uma regra de equilíbrio em Portugal constituem uma espécie de retorno às técnicas do passado, numa revisitação da regra de ouro das finanças clássicas. É neste sentido que vai também a Lei dos Compromissos, em vigor desde Fevereiro deste ano.
Esta lei tem por objectivo inibir a assunção de obrigações de pagamento por parte do Estado, proibindo que sejam assumidos compromissos que não estejam cobertos por fundos disponíveis a muito curto prazo. A necessidade de aprovação de uma lei como esta prende-se com a correcção da lógica do “logo se vê como se paga” que imperava na assunção de compromissos por parte das entidades públicas, muitas vezes favorecida por uma previsão orçamental injustificadamente optimista do ponto de vista das receitas. Ou seja, autorizava-se a realização de despesa mesmo que não estivesse efectivamente disponível a receita para a pagar.
A prática que se pretende conter não é só problemática para o Estado, como qualquer observador intui, por inevitavelmente redundar na contracção de crédito e consequente aumento da dívida pública. Cria também sérios problemas do lado da economia privada, em particular nas finanças das empresas com quem o Estado se relaciona. Nos muitos sectores em que este é o único (ou maior) cliente das empresas, o atraso nos pagamentos gera sérios problemas de tesouraria para os seus fornecedores; alguns falam mesmo de verdadeiros monopsónios por parte do Estado, dada a sua capacidade de influenciar ou dominar os parceiros privados.
Os receios que a presente lei provocou quando foi aprovada são sintomáticos desta cultura financeira instalada. Temeu-se que as limitações fossem um entrave ao normal funcionamento do Estado – padronizando como “normal” a lógica de assumir compromissos sem saber como pagá-los. E lamentou-se o endurecimento das medidas contra os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores e agentes do Estado ou responsáveis pela sua contabilidade, visto que num dos seus preceitos a lei determina que os responsáveis pela assunção ilegal de compromissos respondem pessoal e solidariamente perante os agentes económicos quanto aos danos por estes incorridos – mais uma vez, como se devesse ser “normal” que ninguém seja responsabilizado por lesar o interesse público.
No entanto, não obstante as suas inegáveis vantagens, a lei merece críticas. Isto porque a lógica de rigor em que se fundou a Lei dos Compromissos é cega. Trata todas as instituições por igual: sem distinguir as entidades com e sem autonomia financeira e com ou sem dívidas em atraso; sem distinguir as que têm o dever de prestar serviços gratuitos à população e que, por isso, podem ser levadas a assumir despesa maior do que a receita que está disponível, das que prestam serviços com financiamento de taxas; e, finalmente, não distingue as despesas a assumir, não curando de saber se são ou não reprodutivas. Daí que o Governo posteriormente já pense em aplicar algumas excepções, nomeadamente para as universidades, ultrapassando a limitação legal em matéria de investimentos; para os organismos sem pagamentos em atraso, permitindo a utilização de saldos orçamentais de anos anteriores; para as autarquias locais, dando-lhes folga para o pagamento das suas dívidas; e prevendo a adaptação desta lei às entidades do SNS, para fazer face à elevada dimensão do seu stock de dívida acumulada.
A ver vamos se afinal se consegue induzir mais rigor e, ao mesmo tempo, salvaguardar as diferentes lógicas de funcionamento dos serviços do Estado, de forma a que ele seja exequível.
Docente na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
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19/04/12
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