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* Advogado
Presidente da associação ProPública
O capitalismo inclusivo
e a derrota do neoliberalismo
Tinha de acontecer! Depois de 10 anos de ataques à fortaleza do capitalismo neoliberal, os sitiados, ou mais precisamente os CEO que os representam, parecem agora dispostos a negociar uma trégua, senão mesmo a rendição.
Em agosto passado a poderosa Business Roundtable, uma
associação baseada em Washington que reúne os CEO das maiores
multinacionais norte-americanas, publicou a sua já famosa "Declaração
sobre o Propósito da Empresa". O manifesto, assinado por quase 200
gestores de topo, incluindo os CEO da Apple, Amazon, Coca-Cola, JP
Morgan e BlackRock, propõe-se nada menos do que redefinir o papel da
empresa na sociedade. Esta deixaria de ter por fim apenas ou
principalmente a maximização do lucro acionista, para passar a atender
em primeira linha aos interesses de clientes, empregados, fornecedores e
comunidades. Só depois viria o lucro acionista e, aliás, "de longo
prazo". É o "stakeholder capitalism", o capitalismo de todas as partes
interessadas.
Nos
escassos meses decorridos desde que foi publicado, o curto documento de
uma página A4 suscitou já um intenso debate público, que tem ido das
páginas da Forbes e do Financial Times aos centros especializados das
Universidades de Harvard e Oxford. Há quem pense que tudo não passa de
retórica e taticismo cínico; e há quem se alarme com este "salto para o
desconhecido". Uma coisa parece certa: aqueles que mais têm beneficiado
com o capitalismo unidimensional do "valor acionista" estão preocupados.
E o caso não é para menos.
Já em 2014, a
insuspeita Lady Lynn Rotschild tinha convencido Christine Lagarde e o
príncipe de Gales, entre outros, a constituírem o que veio a designar-se
por "The Coalition for Inclusive Capitalism". "Se não adotarmos esta
solução (capitalismo inclusivo), bem podemos contar com a substituição
do capitalismo por algo muito pior", escreveu então Lady Rotschild.
Talvez inspirada pela ação destes "capitalistas lúcidos", a candidata à nomeação pelo Partido Democrata Elisabeth Warren propôs uma Lei do Capitalismo Responsável,
contemplando medidas que obrigariam os gestores a considerar os
interesses de todas as partes, acabando assim com a primazia do lucro
acionista.
Não se trata, como alguns intelectuais conservadores andam a pregar, de implantar um qualquer neossocialismo.
Há alguns meses Warren Buffett, o bilionário investidor norte-americano
detentor da terceira maior fortuna do país, afirmou: "Definitivamente
os ricos pagam menos impostos do que o grosso da população." Bill Gates
disse, mais recentemente, que o imposto sobre mais-valias deveria ser
igual ao que recai sobre os rendimentos do trabalho.
O
capitalismo dos últimos 30 anos falhou na implantação de mercados
verdadeiramente livres e na criação de oportunidades reais para a
maioria. Os choques financeiros, a desigualdade crescente e a estagnação
e desemprego estrutural que se verificam numa boa parte do mundo estão
aí para o comprovar. É o liberal Financial Times e o seu
economista-chefe Martin Wolf quem o diz: "O capitalismo está viciado" e
"precisa de um reset" (19.09.17).
Foi há quase 50
anos que Milton Friedman escreveu na revista do New York Times a
tristemente famosa frase que define a cartilha neoliberal do gestor
melhor do que qualquer outra: "A responsabilidade social das empresas é
aumentar os seus lucros." A revolução do valor acionista trouxe como
consequência mais marcante o aumento histórico da desigualdade, mercê do
desvio para os acionistas dos fundos das empresas necessários ao
investimento em equipamento, formação e investigação, além naturalmente
dos necessários à adequada remuneração do trabalho.
O
que os CEO da Business Roundtable detetaram foi uma ameaça sistémica
que pode vir a atingi-los com a mesma violência que assume hoje a raiva
contra os imigrantes ou a globalização. Não parece muito provável que
estes beneficiários primeiros da ordem neoliberal se tenham convertido
subitamente em apóstolos desta espécie de capitalismo de rosto humano
defendido pela sua associação. Mas os tempos não estão para hesitações.
Eles melhor do que nós entendem a crise de legitimidade ética e social
que as políticas e as práticas do capitalismo contemporâneo engendraram.
Se os CEO deste mundo, em vez de alinharem a sua missão exclusivamente
pelo interesse dos acionistas, passarem a ter em conta também os
interesses dos restantes cidadãos e das comunidades, isso será uma
enorme derrota para a semicentenária cartilha neoliberal.
* Advogado
Presidente da associação ProPública
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
03/01/2020
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