19/02/2024

CÂNDIDA ALMEIDA

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Crise da Justiça?  

Há cerca de três semanas, com um improvável e espectacular folclore, os media acompanharam em tempo real a realização de diligências de investigação no âmbito do chamado Processo da Madeira. De forma bombástica, exploraram-se pormenores adjacentes aos visados, focando familiares, amigos e outros, espezinhou-se o princípio da presunção de inocência, postergaram-se todas as regras inerentes a uma pacífica, confidencial, isenta e objectiva busca da verdade.

A partir de então, todos os dias surgiam cirurgicamente notícias sobre o conteúdo do processo, os objectos apreendidos, fornecendo-se informações descontextualizadas. Eis que, passados 21 dias, em minha opinião um prazo manifestamente abusivo e inconstitucional, o JIC tornou pública a sua decisão em total discordância com a proposta do MP, de decretar prisões preventivas para os três arguidos detidos. Liberta-os sem qualquer medida de coação, à excepção da que é imposta por lei, prestação do termo de identidade e residência. Como já vem sendo habitual nos processos mediáticos, muitos jornalistas, repórteres e comentadores caem na armadilha da política extremista, que busca o caos das instituições para afirmar a sua antidemocraticidade, e, em coro, desancam a PGR, o MP, afirmam a necessidade de demissão daquela e da intervenção do PR. Fazem afirmações e deduções sem qualquer critério, recorte ou apego à realidade processual.

O JIC, ele só, decidiu não haver indícios para a fixação de medidas de coação, por outro lado o MP é uma magistratura de unidade hierarquizada, transitando a informação processual necessária da base ao topo. Sabia-se se a procuradora responsável pelo processo tem uma equipa que com ela discutiu e trabalhou a indiciação? Sabia-se se o director do DCIAP esteve com as magistradas nas reuniões de trabalho, partilhando a sua posição jurídica e dando orientações àquelas? Sabia-se se este reportou à PGR os indícios consistentes dos crimes imputados aos arguidos e qual foi a sua posição? Não se sabia.

No entanto, perdoem-me os de boa-fé, os seguidores da desgraça, sem qualquer hesitação, afirmaram que uma magistrada do MP não pode, sozinha, decidir o que fazer e o que quiser no processo. O JIC, ele sozinho, discordou de vários magistrados do MP e JIC intervenientes no processo. Porquê responsabilizar o MP por esta decisão? Não sabem que a lei prevê recurso para estas situações, que podem ocorrer frequentemente? A PGR deu, entretanto, esclarecimentos, através de comunicado de imprensa. Afirma a normalidade da actuação do MP, que aqui se referiu, e a convicção na consistência dos indícios.

A investigação prossegue e os arguidos continuam com essa qualidade. Não se vislumbra resquício de crise na Justiça, que segue a sua tramitação. Apenas se lamenta a ausência de segredo de justiça num processo que será esventrado durante toda a investigação.

* Magistrada, ex-directora do DCIAP

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 18/02/24 .

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