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HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
"A maior descoberta sobre o sistema imunitário foi que eram os micróbios, e não Deus, que causavam doenças"
O sistema imunitário é a maior arma do ser humano para lutar contra a doença, curar-se naturalmente e em alguns casos autodestruir-se. Daniel M. Davis, investigador, imunologista e professor da Universidade de Manchester, no Reino Unido, desvenda-o no livro acabado de lançar em Portugal pela Porto Editora - O Incrivel Sistema Imunitário. Nunca precisámos tanto deles como agora - do sistema imunitário e deste livro. O DN conversou com o autor.
O título original do seu livro é The Beautiful Cure [que em inglês é fantástico, mas em português não funciona e por isso a Porto Editora chamou-lhe O Incrível Sistema Imunitário]. Porquê este título para um livro sobre o sistema imunitário?
Porque o sistema imunitário é extraordinariamente belo. É provavelmente a
parte do corpo humano que percebemos melhor e todos os pormenores que
conhecemos sobre o seu funcionamento nos dão a ver a sua beleza
profunda. Só para dar um exemplo, o sistema imunitário tem de combater
micróbios que nunca existiram antes no universo e a maneira como o faz é
fabulosa. Há uma série de células diferentes, genes, proteínas
envolvidas neste processo para nos ajudar a eliminar os germes e há duas
coisas que tiramos disto: uma é a profunda maravilha que cada um dos
nossos corpos é realmente e a outra é a importância médica desse
conhecimento, que permite criar novos tipos de medicamentos.
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É
também na possibilidade de "manipular" o sistema imunitário no sentido
de ele próprio se transformar em medicamento para combater doenças como o
cancro, infeções várias ou doenças autoimunes que reside a beleza?
Sim. Há duas maneiras de pensar nisso: o sistema imunitário é o que nos
cura de diferentes doenças e isso é bonito e segundo, também é verdade
que podemos aumentar o poder do sistema imunitário, criando novos
medicamentos que funcionam reforçando a resposta imunitária para
combater alguns cancros, ou suprimindo-a, para prevenir uma resposta
excessiva como a que acontece na autoimunidade. Portanto, podemos
manipular o poder do nosso sistema imunitário de forma que nos ajude a
combater vários tipos de doenças e foi também isso que me levou a pensar
nele como a cura bonita [the beautiful cure].
Temos agora um novo vírus a desafiar-nos - a SARS-CoV-2. O
que já sabemos sobre a relação que se estabelece entre este e o sistema
imunitário quando entram em contacto?
É um vírus completamente novo, existe há apenas quatro meses, por isso,
para ser honesto, ainda há muitas questões por compreender sobre o que
acontece realmente. Sabemos que pessoas diferentes têm respostas
diferentes ao vírus e há algumas indicações de que os diferentes
sintomas dependem de como cada sistema imunitário responde. Sabemos que,
em alguns casos, alguns dos sintomas mais severos estão correlacionados
com uma resposta excessiva dos macrófagos, células imunitárias, nos
pulmões, e uma das possibilidades de tratamento em estudo é a de baixar a
resposta imunitária nestes casos. Mas ainda há muitas questões por
responder sobre a resposta imunitária a este vírus: se as pessoas podem
ser reinfetadas, por quanto tempo estão protegidas depois de
recuperarem, a própria possibilidade de uma vacina depende da capacidade
de provocar uma resposta imunitária através de meios artificiais. Há
muitas perguntas por responder e há muitos estudos a sair todos os dias e
portanto é como um filme em fast forward. Qualquer coisa que possa dizer-lhe hoje, amanhã pode ser diferente.
Uma
das abordagens terapêuticas que parece estar a ter bons resultados na
covid-19 é a utilização de plasma de pacientes infetados. Como funciona?
A ideia é que os anticorpos presentes no plasma infetado possam
neutralizar o vírus, mas não tenho a certeza de que já esteja a ser
utilizada. Penso que é uma possibilidade que está a ser estudada, mas
não tenho a certeza de que já esteja provado que funciona. Há muitas
ideias a serem experimentadas. Penso que estarão a ser realizados cerca
de 600 ensaios clínicos em todo o mundo e quando uma coisa destas
acontece, quando há um novo vírus, não há uma ideia clara de que vacina
ou tratamento funciona. Temos conhecimento suficiente para tentar várias
hipóteses e no fim algumas delas terão resultado, mas por enquanto é
difícil de prever quais é que terão sucesso. O que estamos a fazer neste
momento é uma série de apostas, algumas delas serão vencedoras e outras
não.
Qual é a sua aposta? Em que linha de investigação está a trabalhar?
Eu estou a dar apoio à investigação. No nosso instituto, na universidade
de Manchester, estamos a pesquisar o que acontece no sangue dos
pacientes hospitalizados com infeção por covid-19. Estamos a analisar
que tipo células imunitárias estão presentes no sangue, como são
ativadas, o que está a acontecer e a correlacionar com os sintomas que
têm e com a forma como respondem aos vários tratamentos e espero que
tenhamos alguns resultados em breve. O que acontece no sangue pode
indicar que tipo de tratamento é mais adequado a cada paciente. Isto
está a acontecer em todo o mundo, em cada país, não apenas no nosso
instituto. Há um esforço internacional que eventualmente levará a
perceber com maior clareza o que acontece no sistema imunitário destes
pacientes e se há indicações úteis no sangue que nos possam ajudar a
perceber que tipo de tratamento pode ser melhor ou pior para cada um.
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A
Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou recentemente para a
possibilidade de a presença de anticorpos não significar imunidade. É um
revés na esperança colocada nos testes de imunidade e na imunidade de
grupo para um regresso gradual à normalidade?
Quando as pessoas estão infetadas com covid-19, é provável que criem
anticorpos e produzam algum nível de imunidade que torna menos provável
que venham a ser reinfetadas, mas não sabemos com certeza se é assim e,
mais importante, não sabemos quanto tempo dura essa proteção. Vamos
saber, com o tempo, à medida que mais pessoas sejam infetadas e mais
estudos sejam feitos, mas neste momento não sabemos. A experiência e o
conhecimento que temos, com as vacinas que existem, dizem-nos que
algumas têm que ser tomadas todos os anos, outras basta uma toma à
nascença para garantirem imunidade a vida toda, portanto sabemos que a
resposta imunitária a diferentes tipos de micróbios varia muito. Sobre
este vírus em particular, sabemos ainda muito pouco. E esta é uma das
áreas da imunologia em que ainda há muito por saber. Ainda não é claro
exatamente quanto tempo dura a parte adaptativa (a memória) do sistema
imunitário e como é criada, sabemos os princípios gerais, que o sistema
imunitário mantém estas células no organismo durante muito tempo para
que se possam multiplicar depressa se o germe voltar, mas não sabemos
exatamente o que leva a uma resposta mais forte ou mais fraca,
dependendo dos diferentes vírus.
No fim do seu livro faz um apelo para uma maior cooperação no
trabalho científico, nomeadamente na indústria farmacêutica, que não
deveria focar-se tanto no retorno financeiro, mas sim na saúde e
bem-estar coletivos. Acha que esta pandemia veio tornar essa questão
ainda mais clara?
A pandemia é uma grande tragédia, mas é verdade que algumas coisas
sairão desta situação que poderão ser boas para a sociedade e uma delas é
essa. Parece que aos poucos o mundo está a unir-se e torna-se claro que
esta é uma situação em que as estruturas económicas normais que temos
não são apropriadas. Parece que temos que encontrar soluções conjuntas -
mesmo que encontremos uma vacina temos que a produzir em quantidades
massivas e distribui-la em todo o mundo, não se trata apenas de ganhar
dinheiro para uma empresa em particular. As coisas estão a mudar e a
longo prazo isso pode ter resultados positivos para a sociedade.
Se o desenvolvimento da vacina para a SARS-CoV-1 [que provocou
um surto epidémico entre 2002 e 2003 em alguns países asiáticos] não
tivesse sido interrompida por falta de interesse financeiro, poderíamos
ter já uma vacina para a covid-19?
Não sei. É muito difícil dizer. Olhando de fora e retrospetivamente é
muito fácil dizer que os fundos podiam ter sido gastos desta ou daquela
forma. Há tantos tipos de investigação científica importantes e tão
difícil de prever se vão ser mais ou menos relevantes. Por exemplo, há
muitos tipos de descobertas científicas que não pareciam muito
importantes há seis meses e agora tornaram-se fundamentais. Neste
momento, uma das preocupações das pessoas é se é seguro receber uma
encomenda por correio e quanto tempo pode o vírus estar ativo numa
embalagem de cartão. Esse tipo de investigação não seria considerado
vital há seis meses. Há novos ramos de investigação a sair desta
pandemia. As coisas estão a mudar todos os dias, por isso não sei se é
justo dizermos que devíamos ter investido mais há 15 anos numa vacina
para a SARS-CoV-1.
Um dos capítulos do seu livro é sobre febre, stress e o poder da mente. O que é que depende de nós (pelo menos em parte) para manter o sistema imunitário a funcionar bem?
Este é um tópico complexo porque toda a gente quer saber como reforçar o
seu sistema imunitário e na verdade as experiências para determinar
isso são quase impossíveis de realizar porque teríamos que infetar
pessoas com uma doença para ver o que acontece. No livro, dou o exemplo
de pessoas que fazem tai shi e mindfulness vs pessoas
que não fazem. As primeiras parecem ter sistemas imunitários mais
fortes, mas não é possível ter resultados científicos comprovados porque
não podemos fazer a experiência, portanto só podemos correlacionar. A
questão é que há outras variáveis que influenciam os resultados, porque
também podem dormir melhor e comer melhor, por exemplo. A única área em
que há mais certezas é que uma longa exposição ao stress não é bom para o sistema imunitário.
E
esta situação pandémica, que levou a maior parte do mundo a ficar
isolada e confinada a casa, pode afetar negativamente o sistema
imunitário?
É impossível saber. Há muitas variáveis. Se as pessoas não dormirem bem,
se estiverem stressadas, se não estiverem a comer de forma saudável
isso é negativo, mas a dificuldade com os humanos é que é há muitas
variáveis que se misturam e é muito difícil isolar uma delas e dizer
fazer isto é bom, fazer isto é mau. Talvez as pessoas estejam menos
stressadas por estarem em casa com a família, talvez estejam mais
stressadas. É muito difícil fazer generalizações.
Os nossos sistemas imunitários são todos diferentes?
Sim. O sistema imunitário de cada pessoa é único e essa particularidade
vem da genética, da história de todas as infeções a que foi exposta ao
longo da vida e de outros fatores e isto é muito importante porque
existe a probabilidade de essas particularidades serem determinantes na
forma como respondemos a este novo vírus, mas mais uma vez ainda não
sabemos quais. Temos que esperar pelos resultados da investigação
científica que está a ser realizada.
Os mais velhos estão mais vulneráveis ao novo coronavírus e a
formas mais severas da doença. No seu livro diz que o sistema
imunitário não deixa de funcionar com o envelhecimento, mas "avaria".
Como assim?
Não é bem avariar, passa a funcionar de forma diferente. Mais uma vez há
uma série de coisas por perceber, mas temos muitas hipóteses a serem
exploradas. Uma delas é que as pessoas mais velhas têm uma série de
células imunitárias capazes de combater infeções antigas, que já
conhecem, em caso de voltarem a acontecer, mas menos capacidade de lutar
contra novas infeções. Outra é a de que existe um maior nível de
inflamação de base nas pessoas mais velhas, o que contribui para
responderem pior às vacinas ou a novos tipos de infeções e as torna mais
suscetíveis às doenças autoimunes, à medida que envelhecem. Não temos
um conhecimento claro do que acontece a nível molecular, mas temos
algumas ideias sobre porque é que os sistemas imunitários das pessoas
mais velhas funcionam de forma diferente e talvez isso leve a uma
resposta sobre porque é que lidam pior, em média, com a covid-19. Pode
ter que ver com o facto de não conseguirem criar uma resposta imunitária
contra o novo vírus ou de esta ser hiperativada, causando um nível
excessivo de inflamação.
Pode-se dizer que o sistema imunitário tem um prazo de validade?
Acho que não é assim tão a preto e branco. Muda com o passar do tempo.
As mudanças do corpo humano são muito dinâmicas, quando uma mulher está
grávida produz uma série de hormonas que nunca tinha produzido na vida,
na adolescência o corpo passa por uma série de mudanças. Portanto, não é
que o sistema imunitário desligue com o envelhecimento, simplesmente
vai mudando ao longo da vida, à medida que envelhece. Mas mesmo entre a
noite e o dia, o sistema imunitário muda de estado e a sua resposta pode
ser diferente.
Grande parte do seu livro é dedicado às
grandes descobertas científicas feitas no campo da imunidade. Qual é, na
sua opinião, a maior de todas?
Penso que uma das mais importantes descobertas - parece tão estúpido
agora - é simplesmente a de que existem micróbios. As pessoas pensavam
que as doenças eram causadas por deus, por castigos divinos, por
bruxaria, por fenómenos naturais, e, na verdade, são germes minúsculos,
como os vírus e as bactérias, que causam as doenças e é desta simples
descoberta que aparecem as vacinas, a importância da higiene e da água
potável e tantas outras descobertas da medicina.
* Afinal o poder é do bicharoco.
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