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IN "VISÃO"
11/10/19
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Matar o mar
Afundando os pés na areia, desatou aos tiros. Disparava contra as ondas, contra as gaivotas, contra as nuvens. De repente, tombou desamparado
Meu pai morreu de um derrame: uma lágrima tombou-lhe do rosto e
decepou-lhe os pés. Esvaiu-se em sangue. No exame do corpo, descobriu-se
que o que se pensava ser lágrima era o próprio coração.
Estava
condenado, disse Pascoal Guitundo dirigindo-se à minha mãe. O seu marido
estava condenado, repetiu batendo com o crucifixo na mesa onde jazia o
corpo do falecido. Pascoal ocupava o cargo congénito e vitalício de
“enfermeiro do Sétimo Dia”. Assim se apresentava aos seus pacientes,
seus clientes, suas ovelhas.
Era noite, o gerador da
aldeia tinha deixado de roncar. Dizer que estávamos numa igreja era
excessivo. O local de culto era um lugar tão oculto que nenhum deus
daria pela sua existência. A sala onde estávamos – a única que existia –
era o lugar do velório. As paredes dançavam à luz de velas espalhadas
nos cantos da sala. O enfermeiro deu um passo em frente e dirigiu-se à
minha mãe.
– Uma morte destas não acontece sem razão. Diga-me, Dona Florinda, o que fizeram vocês lá em vossa casa?
A
mãe encolheu os ombros. Estava tão magra, tão vazia de corpo que
receávamos pela sua integridade sempre que encolhesse os ombros.
– Não sei o que dizer, doutor, há anos que não fazemos nada.
–
Entenda-me bem, dona Florinda. Há mandamentos do céu, outros da terra, a
senhora sabe bem a que me refiro. São nossos costumes, não estão
escritos por escrito.
– Os mandamentos conheço, mas não sei se alguma vez cheguei a conhecer o Arnaldo.
– Viviam juntos há vinte anos.
– Sou esposa, doutor. O que posso saber do meu homem?
Já
só duas velas sobreviviam. A minha mãe separava-se do próprio corpo e
esvoaçava em irrequietas sombras. Tive medo que desaparecesse, engolida
pela parede. O enfermeiro pediu que nos retirássemos para o exterior.
Longe do defunto, talvez a minha mãe ganhasse coragem.
– Pense
bem, dona Florinda. Uma grave ofensa o seu marido terá cometido. Fale à
vontade, estou aqui como enfermeiro e como pastor. Esse seu Arnaldo... A
senhora não suspeita de nada?
Florinda hesitou, costurando os
dedos uns nos outros. A medo foi rebuscando nos singelos caprichos do
marido um que possa ter sido mortal. Recordou, primeiro, como ele dormia
sem tirar a roupa que usara durante o dia. Os que dormem de pijama não
respeitam o que foram durante o dia. O pijama é uma farda para se
esconderem de si mesmos. Era assim que falava Arnaldo.
O médico não pareceu convencido. Não podia ter sido essa a razão. Seria demasiado trivial para tão extraordinário falecimento.
– Pense bem, dona Florinda. Não me faça passar um vexame. O que vou emitir, no caso presente: uma incertidão de óbito?
–
O meu filho, talvez ele saiba esclarecer. Faz uma semana que saíram
juntos. Viajaram não sei para onde. Voltaram diferentes, não sei
explicar.
– Arnaldo viajou? Pronto, já estou a ver o que aconteceu.
– Então, meu jovem, o que nos pode dizer?
Uma
derradeira vela resistia. Depois dela, a escuridão reinaria sozinha.
Por isso, me decidi a falar, apressado. Lembrei o dia em que partimos em
segredo, eu e o meu velho, em direção ao litoral. O pai levava apenas a
espingarda. Nem água, nem pão, nem catana. Apenas a arma. Vamos para
lá. E prolongava a vogal: lááááá.
O senhor sabe, senhor
enfermeiro, não se fala sobre o mar em nossa casa. Respeitávamos tanto a
norma que nunca a palavra “mar” foi pronunciada. Somos do interior,
temos os rios e os espíritos que neles moram.
No meio do caminho,
o meu pai tombou, desamparado. Ajudei-o a levantar-se, reparei que as
mãos ferviam. Tenho febre, disse ele, mas não te preocupes, é só no
corpo. O que se passa, pai?, perguntei. Ele respondeu que sofria de uma
doença que só tinha nome numa língua que não era a nossa. Não quero que
ninguém mais saiba disso, declarou. E por que razão saímos para tão
longe? Sou um elefante velho, respondeu. Não quero que me vejam
definhar.
Dias depois, ao final do dia, escalámos uma duna de
areia e, antes de chegar ao topo, o meu pai parou, os dentes rangendo, a
arma empunhada nos braços trémulos. O que vai fazer, pai?, perguntei,
quase em pranto. O mar tem asas, começou ele por dizer. Quando eu
morrer, o mar vai voar sobre a nossa aldeia e o sol ficará uma pedra
cega, sem tamanho. Ficarão a saber que morri. Mas o que vai fazer agora,
pai?, voltei a perguntar. Fica aqui, filho. Não espreites para o lado
de lá, aconteça o que acontecer, não olhes nunca o mar de frente.
Acabou
de dizer isto e galgou, aos berros, o topo da duna. Afundando os pés na
areia, desatou aos tiros. Disparava contra as ondas, contra as
gaivotas, contra as nuvens. De repente, tombou desamparado. Gemeu e logo
corrigiu os meus intentos: fica onde estás! Obedeci, recolhido nas
traseiras da duna. Por um momento, escutei esse grande silêncio onde
moram todas as vozes. Depois, vi os braços do meu velho ancorando-se na
crista da duna. Arrastava-se como um bicho e, por um momento, temi que
fosse verdade a lenda dos homens que emergem do mar sem pés, sem raça e
cobertos de escamas. Ajudei-o a erguer-se e percebi que sangrava dos
pés. Não tive coragem de olhar mas deixávamos atrás de nós um fundo
rasto de sangue. Não olhes o sangue, advertiu-me. É como o mar, não se
olha.
E caminhou de regresso à vila, apoiando-se mais e mais nos
meus braços. E quando, por fim, entrámos no povoado ele corrigiu os meus
passos: para casa, não, leva-me para a igreja. E foi aqui nesta sala,
que ele foi morrendo. Sozinho, como foi o seu desejo. Aconteceu ontem à
noite. Há horas que jaz naquela mesa. E ainda o carrego nos meus braços.
No
fim das forças, o meu pai me apertou as mãos com o mesmo desespero com
que antes apertara o gatilho da espingarda. Ajudei-o a que se erguesse
e, por um instante, parecia que dançávamos, entrelaçados. Quis falar mas
da boca saiu-lhe não sei se um suspiro ou se a voz de um desses
pássaros marinhos. O enfermeiro assegura que o que dele se soltou não
foi senão a lágrima que lhe decepou os pés. E dentro dessa lágrima,
estava o mar inteiro.
Depois de escutar as minhas palavras, a mãe
ergueu o rosto como nunca antes tinha feito, entrou na igreja e, com
gesto decidido, descalçou o defunto. Com a mesma determinação,
estendeu-me o par de sapatos, o único que o marido tivera em toda a sua
vida. São teus, meu filho. Calcei-os, mesmo sabendo que me faltava
tamanho para encher as solas. Arrastei-os pela estrada até chegarmos a
casa.
A minha mãe entrou para o seu quarto, mas eu fiquei sentado na
varanda, horas a fio sem nunca tirar os sapatos. A manhã nasceu e vi o
mar voando sobre a nossa aldeia. As asas do mar roçaram-me os pés e os
velhos sapatos, como duas indolentes canoas, se foram afastando de mim.
Para longe, tão longe, tão dentro de mim.
IN "VISÃO"
11/10/19
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