30/07/2019

JOSÉ BOAVIDA e MIGUEL MEALHA ESTRADA

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Perturbação de Hiperatividade 
e Défice de Atenção:
quando a ignorância 
faz vítimas inocentes

Pela ética e pela saúde das nossas crianças e suas famílias temos de combater a ignorância de terceiros que fogem quando a floresta arde, deixando para trás as vítimas inocentes.

As perturbações do neurodesenvolvimento são um grupo de doenças causadas por um desenvolvimento anormal do cérebro, com repercussões neuroquímicas e com alto teor genético, com manifestações clínicas nos primeiros anos de vida.

São caracterizadas por défices que afetam o funcionamento pessoal, social, académico ou ocupacional. Limitam-se a pouco mais de meia dúzia, nomeadamente perturbação do desenvolvimento intelectual, perturbações da comunicação (linguagem, fala, comunicação social, etc.), perturbação do espectro do autismo, perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA), perturbação de aprendizagem específica, perturbações motoras (desenvolvimento da coordenação e movimento estereotipado), perturbações de tiques (incluindo Tourette), Síndrome de X-Frágil e outras perturbações não especificadas.

A PHDA é, tal como a perturbação do espetro do autismo, uma das mais estudadas, a mais frequente, mas em pleno séc. XXI, infelizmente a mais discriminada. Pela sua elevada incidência associada ao grande impacto social e patológico, é considerada pelas agências competentes de saúde a nível global como uma patologia de alto risco para a saúde pública.

Um dos aspetos que distingue a PHDA de todas as outras, é a existência duma abordagem terapêutica farmacológica com elevada eficácia, a curto e a longo prazo, e um padrão de segurança ímpar entre os fármacos em geral e os psicofármacos em particular. Os medicamentos atualmente aprovados para a PHDA em Portugal são o metilfenidato (impropriamente designado por “ritalina”), a lisdexanfetamina e a atomoxetina. É de notar que vários estudos parecem apontar que o metilfenidato não só é benéfico no controlo da patologia, mas também parece beneficiar o cérebro das crianças com PHDA. Por exemplo, estudos de ressonância magnética estrutural e funcional têm vindo a revelar que a massa cerebral total de crianças com PHDA que tomam a medicação é igual às que não sofrem da patologia. Em contraste, nas crianças com PHDA que não tomam medicação, têm um volume de massa cerebral reduzido, comparado com os que tomam e com as que não sofrem da patologia.

Contudo, má informação, medos, estigma, dúvidas sobre a sua existência ou completa desinformação sobre a medicação e farmacocinética, contribuem em grande parte para que a PHDA seja a mais incompreendida perturbação do neurodesenvolvimento.

O que se sabe
A PHDA é a perturbação mais comum do neurodesenvolvimento, com uma prevalência de 5–7% na idade escolar, mediana a nível mundial. Nas últimas décadas, a investigação tem demonstrado que em cerca de 50% dos casos, não há remissão na puberdade, persistindo o problema até à idade adulta.

Tanto na criança como no adulto, raramente cursa de forma isolada e as comorbilidades (patologias coexistentes) são a regra. Estas incluem insucesso académico, problemas de aprendizagem específicos, comportamento de oposição e desafio, agressividade, abuso de substâncias, depressão, ansiedade, acidentes de todos os tipos, distúrbios da personalidade, criminalidade, doenças infeciosas, gravidezes precoces, divórcio parental e do paciente no futuro, entre muitas outras. O desenvolvimento de situações comórbidas é imprevisível, o que dificulta a implementação de medidas preventivas. Sabemos hoje que crianças com PHDA têm em regra menos 12 anos de expectativa de vida, comparado com crianças sem a patologia.

O curso e os sintomas da PHDA podem mudar ao longo do tempo e a evidência disponível até hoje é pobre e amplamente inconsistente em relação aos preditores de persistência ou remissão.

A causalidade multifatorial da PHDA reflete-se na heterogeneidade deste problema, na diversidade das co-morbilidades psiquiátricas, nos variados perfis clínicos, padrões de compromisso neurocognitivo, trajetórias de desenvolvimento e na ampla gama de anomalias estruturais e funcionais do cérebro, evidenciadas pelos muitos estudos imagiológicos.

Embora a terapêutica baseada na evidência possa reduzir os sintomas e melhorar significativamente o prognóstico e a qualidade de vida de doentes e familiares, ainda não há um tratamento curativo para esta situação.

Os mitos do costume 
Apesar dos avanços no conhecimento da PHDA, continuamos a ver abordagens públicas a esta perturbação que não têm em consideração o impacto que determinadas opiniões, menos fundamentadas, podem ter nos pacientes e nas suas famílias. Num mundo em que a comunicação é pensada ao milímetro, prefere-se o sensacionalismo, recorrendo a títulos e conteúdos cientificamente incorretos, ignorando o contributo que se está a dar para o aumento do estigma associado a esta entidade.

Assumem-se como verdades incontornáveis, uma série de mitos e equívocos sem qualquer validade científica, potencialmente perigosos e um risco à saúde pública, tais como:
  • A PHDA é um problema benigno, uma variante do normal, não existe como doença, é um diagnóstico inventado com o propósito de medicar crianças “normais”, por pressão dos pais ou dos professores.
  • A PHDA é consequência das incapacidades das famílias, de falta de força de vontade e desmotivação das crianças e de problemas sociais;
  • Há um excesso de diagnóstico e medicação no nosso País;
  • O excesso de diagnóstico da PHDA está relacionado com a falta de psicólogos nas escolas. Se houvesse o número suficiente destes profissionais o problema era identificado precocemente evitando-se o uso de medicação;
  • A intervenção não farmacológica (psicológica e educativa, para não falar em pseudociências como a hipnose, acupuntura, homeopatia, reiki, em dietas sem nexo e validação científica, além de outras intervenções não científicas) é tão eficaz como os fármacos;
  • A Ritalina [o metilfenidato] é um calmante, um espartilho químico e atua tornando as crianças “zombies”;
  • A medicação pode ter alguns ganhos imediatos mas a longo prazo, tem efeitos secundários terríveis e catastróficos no desenvolvimento cerebral.
Quem paga o preço caríssimo pela negação da patologia são sempre os inocentes: a criança (e o seu futuro) e a sua família. Os pais, na sua maioria bastante competentes, influenciados por falsa informação, por incompetentes no ramo da saúde e por ideologia panfletária e populista de alguns partidos em que o seu conhecimento científico é praticamente nulo, tornam as crianças doentes, com famílias desesperadas em bodes expiatórios incompetentes. Por outras palavras, ideologias e ignorância fazem vítimas inocentes. A questão é: quem fica depois responsável por estas crianças e suas famílias? Onde estão os opinadores e ideólogos quando a floresta arde? Quem apaga o fogo?

Haverá um verdadeiro interesse na PHDA? 
A reincidência de notícias sobre a PHDA, veiculando de forma reiterada o mesmo tipo de incorreções, faria pensar que o tema é interessante para a comunicação social.

No entanto, quando em abril passado em Lisboa, estiveram reunidos mais de 1500 investigadores e especialistas internacionais no 7º Congresso Mundial de PHDA, realizado em colaboração com a Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção (SPDA), verificámos uma quase ausência de notícias e um desinteresse em entrevistar quem verdadeiramente investiga e sabe sobre o assunto. Este facto leva a especular que a motivação subjacente à inclusão frequente desta temática em noticias sensacionalistas, não é o real esclarecimento científico, mas provavelmente vender jornais, obter audiências ou servir os interesses de forças políticas ou de grupos profissionais. O alarme social relativo à medicação, associado às “fake news”, cria o clima adequado para facilitar a limitação da ação médica através da aprovação de medidas legislativas ou de ajudar certos “profissionais” a vender métodos de intervenção com muito pouca validação científica.

A ajuda dos serviços públicos
A forma de divulgação, no mínimo “pouco cuidada”, de dados relativos ao uso de psicoestimulantes por entidades públicas com grandes responsabilidades na área da saúde, como o Infarmed ou a Direção Geral da Saúde, dá claras oportunidades à imprensa mais sensacionalista e muitas vezes mal-intencionada, ou a quem interesse distorcer a realidade a seu favor, de gerar alarmismo e inquietação entre a população.

Num fármaco como o metilfenidato, cuja informação exige por razões óbvias um cuidado particular, limitar-se a apresentar os dados relativos ao consumo em milhões de doses/ano, sem qualquer esclarecimento adicional sobre o número de crianças a fazer medicação e a percentagem de crianças no respetivo universo etário (o que concluiria necessariamente que a percentagem de crianças medicadas em Portugal é baixa), é dar um forte contributo para a especulação. Da mesma forma, as mesmas entidades assistem passivamente à utilização desadequada dos seus dados, sem sentir qualquer necessidade de prestar qualquer clarificação adicional.

O condicionamento da opinião pública 
Os instrumentos utilizados para condicionar a opinião pública são sobejamente conhecidos. Relatos imprecisos, generalizações abusivas de casos particulares, demonização dos efeitos da medicação, entrevistas a profissionais sem qualquer credibilidade científica na área, são apenas alguns exemplos.

 Curiosamente a 22 de junho a SIC apresentou uma reportagem “Em nome dos pais, dos filhos e do espírito livre” que insiste nos mesmos mitos e imprecisões sobre a PHDA, mas introduzindo-a de forma diferente. Ao começar por temas muito consensuais na sociedade, como o brincar, a atividade física e a importância de ambos no desenvolvimento mental das crianças, ouvindo pessoas respeitáveis e reconhecidas na área, estabelece uma base credível para o que se segue. Após este início “benigno” e de forma um pouco artificial, é introduzida a PHDA e a medicação, como se a primeira resultasse da falta de oportunidades para atividades ao ar livre e a segunda fosse, para além dos ecrãs, a solução que os pais encontram para manter os filhos quietos. Claro que nada disto aconteceria sem a cumplicidade dum “grupo de médicos malfeitores” que sem qualquer justificação clínica, “encharcam” as crianças de fármacos. Para o demonstrar, seguem-se os “estafados” quadros dos milhões de doses de “calmantes” vendidos em Portugal, intuindo-se que todos e cada um deles são o resultado de má prática médica e nunca duma necessidade real das crianças. Ou seja, se num ano há 1000 crianças a fazer terapêutica estimulante e no seguinte há 1500, conclui-se “sempre” que a situação é pior e jamais se considera que dum ano para o outro, mais crianças passaram a receber o tratamento de que necessitavam. O momento alto da reportagem foi quando um neurobiólogo “especula”, como o próprio afirma na peça, sobre os possíveis efeitos a longo prazo da medicação e um alegado maior risco de consumo de substâncias na idade adulta, quando desde há décadas, há uma inquestionável evidência científica de que acontece precisamente o contrário. Mais uma vez, a ignorância e o viés fazem vítimas inocentes.

Também não é verdade, como por vezes se faz passar, que a este respeito haja duas correntes profissionais opostas, no que se refere às causas, às orientações diagnósticas ou à intervenção terapêutica. Pelo contrário, em poucas áreas da medicina e da ciência, existe um tal consenso entre todos os envolvidos. Atribuir validade científica às opiniões pessoais sobre PHDA, de diferentes profissionais da saúde mental, alguns conhecidos “comentadores da nossa praça” da área da psicologia ou outras, está na origem desta confusão.

Respeitar a PHDA e os seus portadores 
Cada vez se torna mais importante distinguir perceções, impressões, preconceitos e mitos, daquilo que é a crescente evidência científica, relativamente a um dos problemas do neurodesenvolvimento e de saúde mental mais estudados e investigados, em termos clínicos, psicológicos, neurobiológicos, genéticos ou mesmo sociais.

Nos últimos anos têm sido publicados múltiplos estudos, grandes meta-análises ou estudos baseados em registos nacionais de países como a Suécia, Dinamarca, Alemanha ou a região de Hong-Kong, envolvendo séries de dezenas de milhares de crianças e adultos com PHDA.

Esses estudos, mostram de forma inequívoca as taxas de redução de riscos associados à medicação em vários aspetos psicossociais, como criminalidade, condenações e encarcerações, reincidência de crimes violentos  após libertação, depressão, suicídio, lesões não intencionais na criança e adolescente, lesões cerebrais acidentais nas crianças, acidentes de viação, consumos e mortalidade ao longo da vida.

As dificuldades crónicas em concentrar-se, iniciar e executar tarefas, usar as funções executivas e modelar de forma adequada a atividade, os impulsos e as emoções, associadas à PHDA, têm um impacto que varia entre ligeiro e devastador. Para além duma correta avaliação em cada caso sobre a adequação, as contraindicações, a eficácia e os efeitos secundários da medicação, com o conhecimento disponível hoje em dia, há que estar consciente que não medicar também pode ter os seus custos.

Reduzir o fosso entre o que se sabe e está cientificamente comprovado e o que se diz e se veicula, promovendo boas práticas, é de extrema importância relativamente a esta entidade e é um dos objetivos da Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção. Pela ética e pela saúde das nossas crianças e suas famílias temos de combater a ignorância de terceiros que fogem quando a floresta arde, deixando para trás as vítimas inocentes.

* José Boavida é Pediatra do Neurodesenvolvimento e Presidente da Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção – SPDA; 
** Miguel Mealha Estrada é Especialista em Neurodesenvolvimento

IN "OBSERVADOR"
29/07/19

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