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A deputada e o hotel no qual é sócia do pai (e o que diz a lei)
Contradições entre registo comercial e informações prestadas ao Parlamento
O “lapso” de Luís Correia que beneficiou o pai e o sogro
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HOJE NO
"OBSERVADOR"
Parlamento adjudica estadia de deputados
.a hotel de deputada e do pai
.a hotel de deputada e do pai
Comissão de Ambiente fez visita de estudo ao Tejo e deputados dormiram uma noite em Castelo Branco. Hotel adjudicado? O que tem uma deputada como proprietária. AR diz que era "o mais barato".
A Assembleia da República adjudicou a estadia dos deputados da Comissão de Ambiente em Castelo Branco a um hotel que tem como proprietária a deputada do PS Hortense Martins.
A comissão fez uma visita de trabalho ao Rio Tejo nos dias 1 e 2 de
abril — que Hortense Martins acompanhou em parte por ser eleita naquele
distrito — e os deputados acabaram por dormir no hotel da deputada na
véspera (noite de 31 de março) para que pudessem estar a horas no
primeiro ponto do programa: uma reunião às 8h30, na segunda-feira, cujo
anfitrião era o presidente da câmara municipal de Castelo Branco, e
marido da deputada, Luís Correia. Hortense Martins diz ao Observador que
desconhecia que os colegas iam ficar no hotel, detido por uma empresa
onde é sócia do pai.
O gabinete do secretário-geral do Parlamento
justifica a escolha, em resposta ao Observador, alegando que a
Assembleia da República “escolheu o hotel mais barato”
após lhe terem sido apresentadas duas hipóteses pela agência de viagens
que trabalha com o Parlamento. O mesmo gabinete não respondeu à questão
sobre a razão de não ter evitado um hotel que tem como uma das
proprietárias uma deputada.
Hortense Martins garantiu que “não integra a Comissão de Ambiente e Ordenamento do Território nem integrou a delegação que se deslocou a vários distritos,
onde se incluiu o distrito de Castelo Branco”. O Observador sabe, no
entanto, que a deputada participou na reunião com autarcas e até falou
em nome da bancada do PS num evento em Vila Velha de Ródão. Na mesma
resposta escrita, Hortense Martins admite depois ter participado em
alguns pontos da visita: “A signatária (…) de todo o programa da
Comissão de Ambiente apenas participou nas reuniões com os agentes e entidades convidadas, suponho que pela comissão”.
A
deputada do PS justificou essas intervenções na visita por ter sido
“sempre uma das vozes ativas sobre os assuntos da região, em defesa
intransigente dos interesses das populações e do interesse público”. Não
é, por isso, “de estranhar que as questões da defesa da Barragem do
Alvito, a melhor qualidade ambiental no Tejo e as questões da Central de
Almaraz tenham estado nas suas intervenções desde há mais de uma década
e reafirmadas recentemente.”
Quanto ao facto de o hotel do qual é também proprietária (e de que o
sócio com mais participação é o seu pai) ter sido contratado pela
Assembleia, Hortense Martins alega que a “contratação” foi feita a “uma
agência de viagens e não à mencionada empresa proprietária da referida
unidade hoteleira”. Por isso, garante, é “totalmente alheia às questões
referidas relacionadas com reservas ou estadias”. Questionada sobre se,
por questões éticas, não devia ter impedido que o Parlamento contratasse
o seu hotel e do seu pai, a deputada não respondeu.
Quanto ao presidente da Comissão de Ambiente, o deputado bloquista
Pedro Soares, rejeita responsabilidade dos deputados na escolha do
hotel. Pedro Soares diz ao Observador que “aos deputados que compõem a Comissão de Ambiente cabe [apenas] a definição do programa da visita“.
O presidente da comissão esclarece ainda que “a logística, incluindo o
alojamento, é proposta e organizada pelos serviços da Assembleia da
República, tendo o critério para a escolha sido a oferta mais barata”.
Os
serviços informaram o Observador que a agência de viagens “indicou, na
zona de Castelo Branco, os hotéis Rainha D. Amélia (54€/noite) e Tryp
Colina do Castelo (75€/noite)” e que “estas opções foram transmitidas à
Comissão”. Segundo o gabinete do secretário-geral, o custo total “ascendeu a 486 euros“,
referente a uma noite para 9 pessoas. Esta prestação de serviços, por
ser inferior a 5.000 euros, pôde ser feita por ajuste direto
simplificado
O número de dormidas contratualizado não bate certo com as informações —
enviadas para os deputados — referentes à delegação que compôs a
visita, que indicam que pelo menos 11 pessoas (10 deputados e um
funcionário) iriam ter alojamento em Castelo Branco na noite de 31 de
março.
A 31 de março, dia em que dormiram em Castelo Branco, os deputados não tinham qualquer evento no programa. O que justifica a dormida é o primeiro agendamento do dia seguinte: uma reunião com autarcas nos Paços do Concelho de Castelo Branco.
A reunião incluiu quatro autarquias (as câmaras de Castelo Branco,
Idanha-a-Nova, Proença-a-Nova, e a junta de freguesia de Castelo Branco)
e ainda a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro, a Direção
Regional de Agricultura e Pescas do Centro, e várias associações
ambientalistas, empresariais e de agricultores.
Um facto curioso é que o anfitrião da reunião foi o presidente da câmara de Castelo Branco, Luís Correia, que é marido de Hortense Martins. Luís Correia foi recentemente associado,
numa investigação do diário Público, a um grupo de autarcas que criou
uma ONG-fanstasma para receber subsídios públicos. E já teve,
igualmente, problemas com adjudicações feitas a empresas de familiares.
O segundo ponto do programa foi apenas às 11h30 em Vila Velha de Ródão.
E, aqui, a deputada escolhida para falar em nome da bancada do PS foi,
precisamente, Hortense Martins.
A deputada e o hotel no qual é sócia do pai (e o que diz a lei)
Hortense Martins é detentora de 24% da Martinurb — Urbanismo Imobiliário, informação que consta do registo de interesses entregue na Assembleia da República na atual legislatura. A mesma Martinurb detém 26% da Investel — Investimentos Hoteleiros, a empresa proprietária do Hotel Rainha Dona Amélia, Arts & Leisure, em Castelo Branco. O mesmo onde ficaram a dormir os deputados.
Ao
deter 24% de uma empresa que detém 26% da empresa proprietária do
hotel, isso significa que Hortense Martins tem menos de 10% da Investel.
Ou seja: segundo o artigo 21.º dos estatutos dos deputados, o hotel não
está impedido de fazer contratos com o Estado. Mas há um detalhe
relevante: os outros 74% do hotel pertencem a Joaquim Martins, pai de Hortense Martins.
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Ainda
assim, a lei n.º 64/93 (referente a “Incompatibilidades e impedimentos
dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos”) começa por
estabelecer, no ponto 1 do seu artigo 8.º, que “as empresas cujo capital
seja detido numa percentagem superior a 10% por um titular de órgão de
soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam
impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou
serviços, no exercício de atividade de comércio ou indústria, em
contratos com o Estado e demais pessoas coletivas públicas”.
O ponto dois desse mesmo artigo estabelece que “ficam sujeitas ao mesmo regime” de incompatibilidade as “empresas de cujo capital, em igual percentagem (…) [sejam titulares] os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau”
e também “as empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo
detenha, direta ou indiretamente, por si ou conjuntamente com os
familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a
10%”.
O advogado especialista em Direito Administrativo, Paulo
Veiga e Moura, não tem dúvidas de que o impedimento se mantém “por
interposta pessoa” e, portanto, tem de se “aplicar o mesmo regime“.
O advogado diz que a lei é clara quanto a “ascendentes”, por isso,
sendo a empresa maioritariamente do pai, o impedimento é igual a se
fosse da deputada.
Seguindo a lei, a Investel não pode fazer contratos públicos com a Assembleia da República. A única coisa que pode livrar o Parlamento de cometer uma ilegalidade
é a fatura ter sido passada à agência de viagens e não ao hotel. A
prestação do serviço não foi publicitada na parte referente à
contratação pública no Parlamento e o secretário-geral não esclareceu a
razão dessa não publicitação. No entanto, olhando para um contrato por consulta prévia
feito a 21 de março para estadias numa unidade hoteleira, é possível
verificar que, nesse caso, o contrato da Assembleia da República foi
feito diretamente com o Hotel Amazónia e não com qualquer agência de
viagens.
Contradições entre registo comercial e informações prestadas ao Parlamento
Há ainda uma contradição entre o que foi comunicado ao registo
comercial e o que foi comunicado ao Parlamento. No início da legislatura
anterior, Hortense Martins comunicou aos serviços que deixou de ser gerente da Investel a 21 de junho de 2011.
A deputada exerce o cargo em exclusividade e a Comissão de Ética
permitiu que assim continuasse, mesmo quando ainda era gerente, uma vez
que o cargo não era renumerado.
No atual e no anterior mandato, a
questão de Hortense Martins ser gerente da Investel não se colocou para a
subcomissão de ética, uma vez que a deputada já tinha comunicado no
registo de interesses que deixara de ser gerente em junho de 2011. No
entanto, essa cessação de funções só foi comunicada pela empresa
ao registo comercial em março de 2019, quase oito anos depois da
informação prestada ao Parlamento. Ou seja: legalmente e a
título oficial — como vários especialistas defenderam quando o ministro
Pedro Siza Vieira enfrentou uma situação similar — Hortense Martins só
deixou de ser gerente da empresa proprietária do hotel a 8 de março de
2019, cerca de três semanas antes da estadia dos deputados.
Além
do documento de cessação de funções no último mês, há mais documentos no
registo comercial que indiciam que Hortense Martins continuou, depois
de 2011, a ser gerente para efeitos legais. A 31 de outubro de 2013 são
comunicadas alterações quanto à forma de obrigar a sociedade (tomar
decisões em nome da empresa), que passa a ser “pela assinatura de apenas um gerente“. Nesse mesmo documento (de 2013, mais de dois anos depois da alegada saída de gerente) é comunicado ao registo que “a gerência pertence ao sócio Joaquim Martins e a Maria Hortense Nunes Martins“.
O
especialista em Direito Administrativo Paulo Veiga e Moura explica que
“o que conta, perante a sociedade, é o momento do registo comercial”.
Nesse sentido, explica o advogado, entre 2011 e 2019 a deputada
“continuou a ser gerente da empresa perante todos”. Hortense Martins,
aponta o especialista, “quando comunicou à Assembleia da República,
devia ter de imediato assegurado que era comunicado ao registo”.
Assim,
“caso houvesse incompatibilidade com esse cargo, violou essa situação,
pois continuou gerente”. O advogado dá um exemplo para se entender o
porquê de não chegar a comunicação interna da empresa: “É o mesmo que
vender uma casa e se comunicar ao cônjuge. Só tem validade quando se
comunica ao registo predial. Até lá, a casa e todas as responsabilidades
a ela inerentes, são suas.”
Hortense põe culpas de falhas na empresa que é dela e do pai
Hortense Martins garante, em respostas enviadas ao Observador, que não
prestou informações falsas à Assembleia da República já que “renunciou à
gerência da empresa Investel Lda em 21-06-2011”. Segundo a deputada, “se tal renúncia não foi desde logo objeto de registo na conservatória do registo comercial é assunto que cabe à empresa e não à signatária,
assim como outras questões administrativas, nomeadamente registos
comerciais, posteriores a essa data, nas quais a signatária não teve
participação nem responsabilidade”.
A deputada culpa, assim, a empresa Investel pelo atraso.
Mas quem são os donos da Investel? O pai de Hortense Martins (74%) e a
Martinurb (empresa na qual a própria é detentora em 24%). O caso é muito
idêntico ao do ministro Pedro Siza Vieira, que era sócio de uma empresa
imobiliária quando tomou posse, mas garantiu que tinha abdicado do
cargo (em carta enviada à mulher, sócia na empresa) a 15 de dezembro de
2017. No entanto, essa renúncia só foi comunicada depois das notícias
sobre o assunto, a 22 de maio de 2018. Nessa altura, Siza Vieira culpou
uma advogada do seu escritório, a Linklaters, a quem atribuiu o erro de
não ter comunicado a renúncia ao registo comercial.
O “lapso” de Luís Correia que beneficiou o pai e o sogro
Joaquim Martins, que é pai de Hortense Martins, já tinha sido
referenciado noutro caso. Desta vez, por culpa de adjudicações do genro.
Em maio de 2018, o jornal Público noticiou que
o presidente da câmara de Castelo Branco, Luís Correia, assinou — como
representante do município — pelo menos dois contratos com uma empresa
de estruturas de alumínio da qual são sócios o próprio pai, o sogro
(Joaquim Martins) e ainda um tio de Hortense Martins, Adriano Martins.
Alargando a todos os contratos com a autarquia — incluindo os que não
tinham a assinatura de Luís Correia — a empresa beneficiou de sete
contratos por ajuste direto.
A empresa em questão (Strualbi – Estruturas de Alumínio Ldª) era
detida por Joaquim Martins (20%), Adriano Martins (outros 20%) e Alfredo
Correia (20%) e os restantes 40% eram de outros dois sócios. Esta
empresa estabeleceu dois contratos por ajuste direto (um de 54 mil
euros, outro de 39,9 mil euros) em que foi o próprio presidente da
câmara a assinar os contratos. Luís Correia disse na altura ao Público
que se tratou de um “lapso evidente e ostensivo” e que, na sequência
disso, chegou a anular um dos contratos.
Mais uma vez a lei n.º
64/93 impede os titulares de cargos políticos de terem interferência em
contratos em que os familiares estejam envolvidos e tenham interesse. Os
titulares de cargos públicos que violem esta norma podem incorrer na
pena de perda de mandato.
* Portugal à beira mar, um virtual lupanar?
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