14/09/2018

PAULA COSME PINTO

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Errar é humano, Serena

Serena Williams tem razões para dizer que o sexismo existe no universo do ténis? Sem dúvida, por mais que em termos de igualdade a modalidade até tenha vindo a melhorar. Mas Serena foi punida nesta final especificamente por ser mulher? Não. E este não foi certamente o momento mais apropriado para puxar a cartada da discriminação de género como argumento. Mas tal como o árbitro em causa, Serena é humana. E os humanos erram. É preciso é que todos, independentemente da sua posição, do seu historial ou do erro em causa, saibam admiti-lo.

Será que se Carlos Ramos tivesse sido menos duro na primeira penalização, tendo em conta a conduta coerente da carreira da tenista quanto à questão do coaching, isto teria acontecido? E será que se Serena tivesse usado outros modos que não o insulto e a ameaça para chamar o árbitro à atenção o desenlace era este? Mais uma vez, ninguém pode dizer. O que é fácil compreender é que Serena Williams tinha uma pressão imensa nos ombros nesta final, e ser mulher, sim, fazia parte deste bolo. Jogava em casa, tinha os olhos do mundo em cima, basicamente um mundo que ainda espera que ela tenha de provar que tanto a idade como a maternidade não são obstáculos às suas capacidades enquanto tenista. Essas sim, pressões que têm muito de sexistas. Num mundo ideal estas pressões não existiam, mas não vivemos num mundo ideal.

Enquanto mulher, negra, vinda de um meio pobre, que galgou a pulso e que muito penou para conquistar o respeito num universo elitista, maioritariamente de brancos ricos (lamento, mas o ténis ainda é isto), é certamente cansativo isto de se andar sempre contra a corrente e a ter de provar que merece um lugar ao sol. E esta contracorrente não se resume aos courts de ténis, esses são apenas um reflexo do enorme racismo, sexismo e demais formas de preconceito que ainda existem na sociedade onde Serena se move. Por mais que não seja essa a nossa realidade, é importante lembrarmo-nos disto antes de lhe atirarmos pedras fáceis. Mas claro que a tudo isto se juntou o peso e a frustração acrescidos de ter à sua frente uma tenista bastante mais nova e inexperiente, mas que estava nitidamente em condições de ganhar a final. Uma final que seria a cereja no topo do bolo na validação de Serena em tantos aspetos.

Carlos Ramos: ser tendencioso não é igual a ser sexista
Contudo, por mais que possamos e devamos empatizar com tudo isto numa análise geral, também há que perceber que tudo aconteceu durante uma partida de ténis e que nada justifica que qualquer atleta – independentemente do género - insulte ou ameace pessoas em campo, neste caso o árbitro. Mesmo que outros já o tenham feito anteriormente. Se quisermos nivelar nesta perspetiva, então que se questione e exijam punições para quem o faz, em vez de se exigir que se possam repetir os mesmo erros e infrações e sair-se impune. Parece uma pescadinha de rabo na boca, mas são coisas bem diferentes na construção global do tratamento igualitário e da evolução do que está errado.

Carlos Ramos, goste-se ou não do seu estilo frio de arbitragem, acabou por ter razões válidas para a penalizar. E não me parece que o tenha feito por ela ser mulher, tal como ela não se exaltou especificamente porque tem uma vulva entre as pernas que a torna uma histérica, como já li por aí. Carlos Ramos puniu-a porque as atitudes de Serena foram reprováveis perante as regras do jogo, tal como já o fez com atletas do sexo masculino. Claro que, se quisermos, encontramos exemplos de momentos em que este árbitro não puniu jogadores do sexo masculino desta forma. Mas se quisermos, também encontramos inúmeros exemplos em que ele o fez, por mais que não existam dois jogos iguais. Aliás, tanto Nadal como Djokovic têm um historial de quezílias com ele precisamente por acharem que o árbitro português é controverso nas suas decisões. Carlos Ramos pode ser acusado de ser tendencioso perante diferentes jogadores ou de arbitragem inconstante. Mas isso não tem nada a ver com sexismo.

Um momento infeliz não invalida toda uma carreira
Não é errado dizermos que Serena Williams se passou e que teve uma reação que a acabou por prejudicar e lhe tirar a razão (ela tinha razão quanto à dureza da primeira advertência). Serena passou-se como qualquer ser humano se passa de vez em quando. Ou como qualquer árbitro, de qualquer modalidade, invariavelmente também falha nos seus juízos, tão simples quanto isto. Não somos robots, temos emoções difíceis de gerir, dúvidas em determinados momentos, tomamos decisões sob pressão e algumas nem sempre são as melhores. Mas quando erramos, regra geral, sofremos consequências. Para uma atleta de alta competição, numa final como esta, a consequência foi esta.

Infelizmente, depois há consequências que têm um espectro mais amplo do que a nossa esfera pessoal. Ainda há poucas semanas a tenista foi alvo de decisões sexistas quanto à sua indumentária, por exemplo, e a sua reação foi exemplar, digna de aplauso. Aliás, é essencial que mais atletas se insurjam contra a discriminação sexista sistémica no mundo do desporto. Mas neste caso não foi de todo oportuno usar este argumento, nem muito menos produtivo para a credibilização da causa. E este é o ponto que realmente me incomoda nesta história.

Seja como for, em qualquer movimento ideológico e de mudança de paradigma existem interpretações pouco construtivas da mensagem (olhemos para a política ou para a religião) e momentos pontuais em que esta é usada de forma errada ou impulsiva. Mas isso não invalida de todo a importância e seriedade da mesma na sua globalidade. Tal como este momento infeliz da carreira de Serena não invalida que ela seja a melhor tenista de todos os tempos, e uma fonte de inspiração para pessoas do mundo inteiro.

IN "EXPRESSO"
11/09/18

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