08/11/2017

ROSÁRIO GAMBOA

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A mulher adúltera

Não, não foi excessiva, como criticou o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a onda de revolta que se ergueu na última semana sobre a decisão de um juiz do Tribunal da Relação do Porto em torno da culpabilização de uma "mulher adúltera". A indignação é um sinal de maturidade: consciência cívica do que é lesado, quando uma instância do poder - um órgão de soberania - atenta contra os direitos humanos onde as nossas melhores crenças sociais e políticas se alicerçam.

Não se tratou de um incidente ocasional, de um mero caso infeliz, mas de uma atitude repetida, sistemática, agora detetada, que passou em branco, ao longo de anos, por entre os pingos da chuva do sistema.

O processo judicial da "mulher adúltera" terá seguido todo o percurso formalmente estipulado: o Ministério Público insatisfeito com a decisão do Tribunal de Felgueiras, que suspendeu a pena a dois homens que sequestraram e agrediram violentamente uma mulher, recorreu para a Relação. Mas os dois juízes que apreciaram a pena mantiveram-na e, assim sendo, não há direito a recurso superior.

Mas não é a pena em si que motiva a indignação, ou nos surpreende e fragiliza pela vulnerabilidade a que percebemos estar expostos. O que choca é o recurso ao contexto do adultério como fundamento natural, "compreensível", de atenuante do crime de violência exercida sobre uma pessoa. O que nos agride é a crueldade, o ressabiamento machista, expostos em mais do que uma deliberação, o uso da justiça para promover uma visão do Mundo disforme, legitimada sob a autoridade de uma decisão jurídica.

Quais os deveres e limites profissionais de um juiz? Onde se estriba e avalia a sua obrigação deontológica de lealdade aos princípios mais essenciais da Lei da Republica do qual é representante, quando usa dos mais esconsos preconceitos para fundamentar sentenças que criminalizam as vítimas e legitimam a violência dos agressores? Onde jaz a responsabilidade ética, formativa do sistema judicial? Abrir-se-á uma averiguação; decisão assumida após a exaltação pública!

Não basta pedir aos juízes prudência na linguagem e na forma como fundamentam as decisões. O problema não é de forma ou estilo, mas de conteúdo, valores humanos, substância crucial de um Estado de direito democrático.

A justiça não é um mero aparelho técnico preso em regras, mas um sistema vocacionado para a defesa de princípios humanos e sociais.

É, pois, preciso mais: na inquietude da sociedade civil e na resposta do sistema.

*PRESIDENTE DO POLITÉCNICO DO PORTO

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
03/11/17

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