26/02/2017

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HOJE  NA  
"VISÃO"

"Quem defende que as crianças têm de trabalhar mais, depois de um dia inteiro na escola, esqueceu-se do que é ser criança"

Entrevista a Cesar Bona, professor espanhol, eleito um dos 50 melhores do mundo

Saltou para a ribalta ao ser considerado um dos 50 melhores do mundo pelo Global Teacher Prize, uma espécie de prémio Nobel da Educação. Aos 45 anos, o espanhol Cesar Bona quer avisar o mundo que ser professor é um privilégio. Afinal, se uma pessoa tiver paixão pelo que faz, mais facilmente imprime esse gosto nos outros.
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Em Portugal para promover o seu mais recente livro A Nova Educação, este maestro, que em castelhano designa o professor dos primeiros anos de escolaridade, assume que, além de ensinar, a escola também existe para educar os adultos de amanhã, para os estimular a querer viver num mundo melhor.

"O importante é promover a cooperação, educar por empatia", salienta. Oriundo de uma pequena aldeia perto de Zaragoza, filho de um carpinteiro e de uma dona de casa, o professor que sabe de onde vem, e para onde vai, diz que foi o destino que o pôs neste papel: "Quando era mais novo queria ser futebolista."

Porque diz que ser professor é um privilégio?
Todos os dias são um desafio e também uma grande responsabilidade. É um privilégio porque podemos convidar as crianças a olhar para o mundo à sua volta e a tentar melhorá-lo. Para mim, ser professor não é só abrir um recipiente e enchê-lo de conhecimento. É a possibilidade de estimular a ser melhor e a querer mudar o que o rodeia. É também uma grande responsabilidade porque essa marca fica para sempre sobretudo quando se é o professor referência, o primeiro contacto com a escola e a aprendizagem. E se aqueles alunos se vão lembrar de mim para toda a vida, quero que seja uma lembrança positiva.

É o mesmo lema do Homem-Aranha: "Com um grande poder vem uma grande responsabilidade."
É por aí, exatamente. O professor tem esse poder imenso nas mãos: imprimir a melhor mensagem possível em milhares de crianças que lhe passam pela frente.

O que valoriza mais na sala de aula: que aprendam, que fiquem curiosos e queiram saber mais, que sejam pessoas bem formadas?
Há de facto muita coisa que hoje recai sobre a escola. Mas o desafio é esse: ensinar-lhes o que precisam, estimular-lhes a curiosidade para gostarem de aprender e irem à procura de mais conhecimentos, e ainda formar boas pessoas, gente que trate bem os outros, que respeite o meio ambiente, que tenha responsabilidade social.

Ter paixão pelo que faz é meio caminho andado?
Paixão e esperança. Se convives com quem está cheio de esperança na sua essência, porque as crianças são os adultos de amanhã, são ambas imprescindíveis. À mistura com a curiosidade e a criatividade, as possibilidades que se apresentam a um professor para provocar alterações nas vidas dos seus alunos são imensas. Temos de ensinar muitas coisas, mas temos de ser um abre-portas, para que todos tirem a curiosidade da caixinha e a ponham ao seu serviço, para que seja o motor do seu dia a dia. Uma criança que gosta de aprender vai fazê-lo a vida toda. Estimulando a curiosidade das crianças, alimenta-se ainda a criatividade, muito importante para resolver problemas e encontrar caminhos novos quando já ninguém sabe o que fazer. Porque lhes permite ver as coisas de outra maneira.

Parece então que subestimamos constantemente as crianças...
Sim, em todos os sentidos. Eles têm imensas coisas que podem partilhar connosco e não valorizamos. A nível social, isso também acontece. Faz falta perguntar às crianças como mudavam um parque, que alterações gostariam de ver no bairro onde vivem, o que gostariam que acontecesse para melhorar a vida dos outros. Quando uma pessoa arrisca fazê-lo, os resultados são sempre surpreendentes.

Regra número um: nunca esquecer a criança que há em nós. É isso?
Nunca. Nas crianças está toda essa maleabilidade, esse olhar sem preconceito, sem ideias feitas. Isso permite compreendê-las melhor e ajudá-las no seu percurso. Ao colocarmo-nos ao seu nível, olhos nos olhos, tudo fica mais fácil.

No livro A Nova Educação, alinham-se ideias como "Não faço nada de extraordinário, apenas me divirto na sala de aula" ou ainda "Sou professor mas não sei tudo. Vocês também podem ensinar-me". Como é que se faz isso ?
Quando me divirto, desfruto. E isso é muito importante porque à minha frente estão pessoas que, durante toda a infância e adolescência, não podem mudar de vida, como um adulto faria. Estão ali e têm de ali estar, na escola, na sala de aula, diante do professor. Daí a grande responsabilidade: conseguir que tenham ganas de voltar no dia seguinte. Todos os dias, aqueles miúdos são obrigados a estar sentados durante seis horas, apenas a escutar e a repetir, e isso é aborrecido para qualquer um. Para um adulto também, não?

Imagino que o desafio seja maior por vivermos numa zona do globo mais envelhecida e onde as crianças são cada vez mais raras e crescem superprotegidas...
É importante não cair nesse equívoco: nem sempre tudo corre bem e é importante ensiná-las a lidar com a frustração. É assim que se estimula a resiliência na circunstância em que você é diferente de mim, e temos todos de aprender a respeitar essas diferenças.

Como se educa para a cooperação e não para a competitividade se vivemos num mundo cada vez mais competitivo?
Daí a sua premência. Porque uma das maravilhas da escola é que ela pode mudar a sociedade. Se acreditamos que é a chave para mudar o mundo, então temos de educar para a cooperação. A escola é o lugar ideal para promover o que queremos para o mundo em que vivemos.
Muitas famílias mudam os seus hábitos e a suas rotinas por força das aprendizagens que os filhos trazem da escola: alteram o que compram, passam a fazer reciclagem... Imagine--se isso replicado por milhares de casas, em todo o mundo. É um poder extraordinário à nossa disposição.

A crise perturba esse processo? A escassez torna-nos mais competitivos?
Depende. Temos vivido em crise nos últimos anos, mas isso não nos tornou menos sensíveis, por exemplo, à questão dos refugiados. As crianças, e as escolas, têm promovido os valores da solidariedade com quem tem menos insistindo que juntos somos todos mais fortes. Claro que tanto podemos instigar uma criança a ter uma nota melhor do que a do companheiro como podemos estimulá-la a ajudar o outro para os dois terem notas melhores. Depende do que queremos.

E os pais, preocupados com o sucesso do seu filho, não perturbam esse processo?
Às vezes penso que temos de nos reeducar todos. Claro que cada pai quer o melhor para o seu filho. Mas às vezes o melhor para um filho é dar um passo atrás para ajudar o colega do lado e depois seguirem os dois em frente. Melhoramos a sociedade sempre que ajudamos um companheiro. E é uma maneira maravilhosa de aprender: aquele que ajuda o outro sente-se depois tão bem, tão orgulhoso, que nunca mais esquece o que se tratou ali. É disso que se trata: somos seres sociais, não podemos continuar a ensinar como se fossemos indivíduos que vivem isolados.

Ainda ouvimos muitas vezes que a escola ensina, a casa é que educa. O que pensa sobre isto?
Temos de apagar isso do discurso da educação. A casa e a escola são parceiros num projeto educativo. Há um ditado africano que diz que é preciso toda uma aldeia para educar uma criança e a escola é o melhor lugar para ajudar os pais a educarem os seus filhos. A aula funciona como uma espécie de micro sociedade. Se queremos mudar a sociedade, então devemos promover também essas alterações na sala de aula.

Recentemente, cresceram as críticas a uma instituição que está igual ao que era há 150 anos. Porque é que a Escola resiste tanto à mudança?
É uma forma de nos sentirmos mais tranquilos. Queremos educar os nossos filhos como fomos educados, esquecendo todas as transformações que o mundo conheceu. Há ainda um outro fenómeno: aplaudimos os exemplos de fora, mas não aceitamos mudanças cá dentro: por exemplo, a escola finlandesa anunciou que acabou com as paredes e todos aplaudem. Se eu, aqui, quiser derrubar um muro que seja, já me acusam de estar a querer fazer uma revolução. As escolas estão organizadas como fábricas, como locais de trabalho. Penso que quem desenha escolas devia saber tanto de arquitetura como de crianças. O meu objetivo é que, ao fim do dia, quando vão para casa, todos reflitam sobre o que aprenderam e como vão utilizar essa aprendizagem.

E tem sempre autonomia para fazer isso?
Nem sempre e não é fácil. Mas os professores têm estado muito à defesa. Optam demasiadas vezes por fechar a porta da sala, proclamando que a aula é deles e portanto fazem como querem. Defendo o contrário: deixar a porta aberta. Prefiro sempre partilhar o que faço. É neste processo que descobrimos que não somos ilhas e não estamos sozinhos na difícil tarefa de educar os outros.

Polémicas de Portugal que se repetem em Espanha. Como vê a questão dos TPC?
Quem defende que as crianças têm de trabalhar mais, depois de um dia inteiro na escola, esqueceu-se do que é ser criança e como, quando era mais pequeno, gostava de aprender mas também de estar com a família e de brincar. Eu gostava de ir ao parque e ao rio. Hoje, há milhares de crianças a fazer deveres horas a fio, depois da escola, até à hora do jantar. E não têm culpa que os currículos escolares sejam tão compridos. Todos os dias, segunda, terça, quarta, quinta, sexta. Quem é que, depois disto, tem vontade voltar de ir para a escola no dia seguinte e aprender? Os TPC são uma prática ultrapassada.

Mas esteve contra a greve aos TPC, que os pais promoveram em Espanha?
Sim, porque uma greve implica estar contra alguma coisa. No caso, opõe pais a professores, e eu acredito que esse caminho deve fazer-se antes pelo diálogo. Devemos pensar como chegar a um acordo, tendo em conta que no centro está a criança e temos de pensar é no que é melhor para ela. Sabemos que a força dos TPC e da obsessão dos resultados escolares assenta também no impacto que têm na elaboração de rankings de escolas... Vemos o que está a acontecer com o PISA: Parece uma competição desportiva. Ah, Espanha ficou em quinto lugar, ah, Portugal está à frente. E o quê? O que quer isso dizer? Qual o impacto disso? E tem muita importância para quem? Para os governos. Sei que Portugal melhorou mas Espanha está na mesma, em 15 anos a avaliar as competências matemáticas, científicas e domínio da língua materna. Então e a respeitarnos uns aos outros? E a ter consciência ambiental? E ser tolerante com o diferente?

E é possível manter essa aposta numa educação diferente mesmo com as piores turmas?
Sobretudo bom, e não dividiria as turmas em piores ou melhores. Há turmas menos fáceis, geralmente constituídas por crianças que têm milhares de razões para estarem tão descontentes, tão revoltadas. Primeiro, temos de tentar saber o que passam, nas horas em que não estão ali, e temos de ver isso como um investimento. Para lhes ganhar a confiança, o respeito e depois arrancar a alta velocidade para as outras aprendizagens.

Soa a provocação...
E é, um bocadinho. Mas a verdade é que todos temos algo para oferecer. Se nos focarmos no mal, só vemos o mal. Se desviarmos a atenção para o bom, então esse valor vem ao de cima. Estimula a sua autoestima e isso pode fazer maravilhas no futuro.

* Aprende-se muito com quem sabe.

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